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A Idade do Serrote: Murilo Mendes, Maestro do Tempo

A Juiz de Fora de Murilo Mendes tem som e sabor, e sua obra parece a mente que se perde pelo devaneio e paralisa a língua no instante da recordação. A idade do serrote (1968) é uma autobiografia em, importante ressaltar, “prosa poética” – aqui esse termo tão banalizado me parece muito bem aplicado. Mendes busca através de capítulos intitulados a partir de personagens que conheceu na infância e juventude, não apenas relembrar, mas recriar, mesmo que momentaneamente, a cidade em que nasceu e se criou, as sensações que recaíram sobre seu corpo minúsculo quando se deparou com suas primeiras paixões, e as figuras quase mitológicas que atravessaram sua vida. Seu olhar de poeta que se volta para o passado poderia cair nas armadilhas da nostalgia, mas é justamente no apuro da linguagem que encontra em sua própria história uma potência de fabulação e transformação.

De certa maneira, o autor opta por uma espécie de cronologia na sua escrita. Há nos capítulos iniciais uma formulação muito mais ágil no comentário dos eventos do que no restante do romance, em que acontecimentos que antecederam a existência de Murilo são postos de maneira cortante e jocosa, justamente por se tratarem de coisas não-vividas pelo autor. Contudo, a ideia que o autor tem de uma ordenação temporal é muito mais abstrata, dialogando com suas influências surrealistas. É nesta chave que podemos ler, como a explicação de sua arché, o seguinte: “O dia, a noite. Adão e Eva – complementares e adversativos. Meus pais: Onofre e Elisa Valentina, Adão e Eva descendentes. A multiplicação dos pais. A multiplicação dos peitos. A multiplicação dos pães. A multiplicação dos pianos”. Nesse trecho inicial, a sua origem pessoal, enquanto menino, filho de Onofre e Elisa Valentina, é elevada à condição messiânica, enquanto no movimento contrário transforma em terrenas as figuras elevadas. A pretensa “cronologia” da sua vida, portanto, tem ares de brincadeira, e a segmentação em capítulos age mais como uma maneira de apresentar novos fragmentos e aforismas. O livro é separado em curtos capítulos que não parecem ter conexão além de construírem, juntos, a rede de pessoas, coisas e lugares que fizeram parte da formação inicial de Murilo, e deste modo, costuram no passar das páginas suas memórias e consequentemente o próprio poeta.

Antonio Candido, ao analisar A idade do serrote ao lado das obras autobiográficas de Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, compreende que há neste romance específico “uma poesia inextricavelmente ligada à ficção”, uma vez que Murilo nos obriga a realizar uma dupla leitura ao iniciarmos seu livro. Segundo Candido, há o aspecto da recordação e da invenção em concomitância, que se comportam na obra dialogicamente. Candido enxerga no livro de Murilo que o retrato que o poeta traz do passado não é uma expressão de si, mas “aquilo que formava a constelação de que era parte”. Ou seja, sua autobiografia pode ser considerada uma heterobiografia, já que o autor associa suas experiências individuais às experiências compartilhadas. Mendes nos toma pela mão e nos leva para caminhar por Juiz de Fora, e é como se as pessoas e as coisas fossem vivas e reais, o gosto por gente, comida e música impressos a cada passo e a cada novo personagem apresentado. Não é somente o relato da vida de um poeta moderno, ou somente o retrato da sociedade juizforana, mas sim uma leitura sincera dessa contaminação entre os corpos.

No capítulo em que o narrador relembra Cláudia, sua musa da época da escola nascida na mística cidade de Mar de Espanha – o mesmo capítulo em que nos traz a célebre imagem de Juiz de Fora como “um trecho de terra cercado de pianos por todos os lados” – Mendes se apresenta de maneira seminal: “movido por um instinto profundo, sempre procurei sacralizar o cotidiano, desbanalizar a vida real, criar ou recriar a dimensão do feérico”. Murilo enxerga na configuração do banal uma arca de tesouros para a fabulação, recuperando no estilo de Guimarães Rosa uma voz criativa para a contação de histórias, voz que não é escrava da linguagem, e sim sente-se totalmente confortável para manipular palavras, inventar expressões e incorporar estrangeirismos. É por essa familiaridade com os mecanismos da língua portuguesa que Murilo habilmente situa os personagens sobre suas impressões pessoais, e torna-se possível, através dos neologismos, enxergar em suas musas olhos putais ou estralunados, e em uma Juiz de Fora habitantes que tesouram, borboleteiam, noiteclareiam, cobranoratizam e beladormecem. Desta forma, o autor recupera uma cidade espectral, repleta de figuras que não só já se foram, como parecem nunca ter existido, aliando a essa fantasmagoria uma língua nova, suspensa no tempo.

Há em sua escrita algo que atordoa – ao mesmo tempo que nos sentimos completamente puxados para dentro da sociedade juizforana do início do século XX, que parece tão universal justamente por ser retratada de maneira tão particular, Murilo também reforça um certo distanciamento sobre seus objetos, como se se enxergasse ali, como um menino, ao passo que recorresse a suas referências atuais, como homem. Para Murilo, “a história deveria ser feita de abusões e mal-entendidos”, reconhecendo que a realidade não passa de mera ilusão. Não ilusão no sentido de se tratar de uma mentira, o que seria reducionista, mas como uma das muitas formas de se ler o mundo e a história. É interessante como A idade do serrote se apresenta mais como uma miscelânea de crônicas do que propriamente uma autobiografia estanque apoiada em fatos. Em suas teses sobre o conceito da história, Walter Benjamin diz que o cronista, por não distinguir grandes acontecimentos dos pequenos, faz juz à verdade, já que nenhum acontecimento, por mais banal que possa parecer, é esquecido pela história. O cronista, nesta chave, estaria muito mais próximo de um materialismo histórico do que um historicismo que busca eternizar o passado. Mendes, durante o livro, se mostra mais preocupado em relembrar as sensações experienciadas na juventude, e tentar de algum modo recriá-las para o leitor, do que propriamente descrever acontecimentos factuais da sua vida.

Uma das imagens mais representativas desse aspecto é a que traz Sebastiana. O fragmento é escrito de maneira cortante, como a maioria dos seus capítulos, de modo a nos atirar no redemoinho de sensações que uma só pessoa pode suscitar, e três páginas com um longo período repleto de flashes sugerem a vida inteira da personagem. Sebastiana, sua ama de leite (“é do leite que vêm as histórias que ela nos adormece”), é a representação da sua infância, repleta de amor e acontecida em uma velocidade que dá tontura. “Sebastiana só tem peito e mão, eu nunca vi os pés de Sebastiana, de resto Picasso disse a um discípulo que não existem pés na natureza, Sebastiana procura a chave do armário, sempre perdem a chave, Sebastiana diz almário (…) a língua de Sebastiana lhe pertence”. O colo de Sebastiana para Murilo era o lugar em que seus pensamentos saltavam pelas árvores, e já enxergava na língua uma potência anárquica. Em poucas linhas, somos apresentados a Sebastiana, rapidamente atirados aos seus hábitos e à rotina ao fazer a comida e cuidar da casa, e conhecemos a sua alegria e suas danças. E de repente, “Sebastiana envelhece adoece e passa a destrabalhar fica deitada no seu quarto nas trazeiras da casa com as paredes cobertas de santos”, deste modo, sem vírgulas, e ainda: “Sebastiana está muito mal, a morte remexe nos seus guardados (…) Sebastiana morre cercada pela nossa família, seu corpo vira um jardim, a choradeira é geral”.

O aspecto fragmentário de A idade do serrote é responsável por nos passar o sentimento de que o tempo está se desmanchando – o tempo, nesse caso, como kronos, tempo cronológico, dos relógios e calendários. Os registros das memórias de Murilo se dão na dimensão de kairós, o tempo representativo de um instante essencial. Esses instantes não são tomados por uma perspectiva normativa, como se quisesse fazer com que momentos se encaixassem em fatias de passado marcadas por segundos, horas ou dias. Pelo contrário, Murilo consegue a proeza de, por meio da linguagem, dilatar o instante, como se buscasse encapsular a singularidade do acaso, de uma pessoa. Isso dito, há neste romance uma sensação de urgência um tanto anômala para um livro de recordações. O exercício de sacralizar o cotidiano sob a forma de rápidas sucessões de imagens acorda no leitor uma sensação palpável de que o tempo está se movendo de maneira distinta, mais rapidamente, o que pode causar inicialmente um certo estranhamento pois nos apegamos a uma figura que tão fácil quanto chega já se despede. Adelaide, harpista que tocava na orquestra do teatro local, dá as primeiras lições de música e erotismo para o jovem Murilo (“Eu a temia e a desejava, adivinhando-a, de noite, triangular”), e figuras como ela, com uma presença veloz no compilado de personagens do livro simbolizam a própria crença do poeta, que antes de encerrar o capítulo diz – “sempre procurei extrair o maravilhoso do imediato”. 

Segundo Giorgio Agamben, o homem contemporâneo é anacrônico e inadequado, é aquele que “pode odiar seu tempo, mas sabe, em todo caso, que lhe pertence irrevogavelmente”. Este homem contemporâneo, que é inteligente, reconhece a importância da obscuridade do presente e usa a luz do passado para iluminá-lo de alguma forma, sobrepondo, deste modo, diferentes tempos. Mendes parecia ser um verdadeiro homem contemporâneo: o seu movimento em recorrer ao passado é disruptivo ao se apoiar no que a memória não consegue dar conta, aquilo que é impossível de sentir novamente senão pelo trabalho com a linguagem, que tenta trazer alguma materialidade aos sentimentos.

Juiz de Fora é um dos protagonistas do passado inebriante do poeta. A rua Halfeld (e este é o nome do capítulo) não é apenas um cenário inerte para todas as criaturas pelo autor apresentadas – “passam donas de olhos, boca e outras delícias vedadas aos menores de 17 anos”. A rua age sobre Murilo como um palco das suas paixões adolescentes, não um elemento estático das ações representadas, mas componente fundamental de qualquer peça. Por quase todo o capítulo, Murilo se atém apenas a descrever o que a rua Halfeld pode proporcionar, por ela própria ser um acontecimento, uma anomalia espacial em Juiz de Fora que, pelos acasos e jogos do universo, permite que o poeta consiga fabular sobre o andar, os gestos, os acessórios e os hábitos dos transeuntes (“meu Deus como gosto de ver gente e coisas”). 

Ao final, o autor se desculpa, de maneira irônica, por não situar a rua no espaço, se ocupando apenas dos pedestres – “ponho sempre em primeiro plano o homem e a mulher”, e se atarefa de, em poucas linhas, descrever materialmente a “reta muito comprida” que constitui aquele quadro, com os estabelecimentos que crescem dos dois lados, explicando de modo sucinto e brincalhão onde começa e onde termina. A cidade parece exercer uma espécie de magnetismo sobre o autor, uma vez que, mesmo tendo escrito o romance em Roma, consegue se lembrar com perfeição das miudezas do dia-a-dia juizforano. Suas impressões sobre a cidade mineira estão muito impregnadas em seu imaginário poético, causando assim com o manuseio das palavras um retorno instantâneo ao que viveu na tenra idade. Juiz de Fora acompanha o amadurecimento do menino, mas é aquilo que a cidade foi que se torna matéria fundamental para compor a teia de recordações de Murilo. São os personagens-agentes da cidade que constituem sua autobiografia, servindo como um exemplo das mudanças pelas quais passaram as cidades brasileiras na virada do século.Em uma crônica publicada no Correio da Manhã em dezembro de 1968 a respeito de A idade do serrote, Drummond aponta que este não é um livro de memórias com “ar de flores secas, imprensadas entre as páginas”, mas é mesmo a própria cidade mineira, que salta e puxa o menino para chupar laranjas. Ao voltar os olhos para o passado, Murilo se atém ao espetáculo do cotidiano e, aqui tomo emprestado os famosos versos de Drummond, o tempo é sua matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

Em sua autobiografia – ou, novamente um empréstimo, em sua heterobiografia – Mendes apreende o tempo passado não como uma circunstância estática, imóvel, mas como uma oportunidade, uma dimensão de criação. Ao buscar nas entranhas da linguagem uma ferramenta para sobrepor tempos, aceitando como é subjetivo o que é entendido por história, cria uma Juiz de Fora fértil em ruas, ares, cores e paixões em movimento. Murilo diz que “pensar é escrever sem acessórios”, e é logo com esses acessórios da língua que consegue criar uma obra que reflete os movimentos dos pensamentos – contraditórios, sobrepostos, confusos, voláteis, absurdos. Absurdo, sim, por isso o cito novamente, do capítulo simplesmente chamado Momentos & Frases: uma das minhas manias era querer ver o sono, o exato milésimo de segundo em que adormecia, o traspasso da vigília ao sono, absurdo, sei, por isso mesmo fascinante, que seria de nós, ahimè! sem o absurdo”. A idade do serrote me parece registrar perfeitamente esse milésimo de segundo, quando o absurdo transpõe o presente e o real. O instante oportuno enfim se apresenta, e Murilo Mendes, poeta presente, consegue magistralmente capturá-lo.