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A Ilha dos Prazeres Proibidos e o Contrabando Ideológico Pelo Cinema

O cinema, como toda forma de arte, tem um enorme histórico de luta contra a censura. O cinema brasileiro, em especial, sofreu bastante durante a ditadura imposta pelos militares entre 1964 e 1985 – Neville d’Almeida, por exemplo, teve diversas obras barradas pelo regime. Nesse período, surge a famosa pornochanchada, gênero que costumeiramente é visto como piada, como algo menor, mas que esconde um forte teor político em boa parte de suas principais obras. Análises e críticas que se disfarçam por trás dos corpos nus para expurgar o sentimento de seus autores sobre a situação terrível que o Brasil vivia no período. 

Violência na Carne, filme de 1981 dirigido por Alfredo Sternheim, é um belo exemplo. Um dos momentos mais emblemáticos do longa-metragem, recheado de cenas de sexo, é justamente a imagem de um carro da polícia em chamas, gritando o posicionamento anti-repressão e contra o Estado ditador daquele período. Dois anos antes da obra de Sternheim, porém, um dos grandes autores da história do cinema brasileiro, Carlos Reichenbach, havia lançado um dos mais interessantes manifestos criticando a ditadura e a classe média brasileira com Ilha dos Prazeres Proibidos

Reichenbach foi um dos artistas brasileiros que muito sofreu com a ditadura. Seu Império do Desejo, por exemplo, teve tal título “imposto” pelo produtor, Antonio Polo Galante. Tanto em Império quanto em Ilha dos Prazeres Proibidos – que foram filmados com um intervalo de apenas dois meses – Reichenbach filmou tudo rapidamente, como era típico no cinema da Boca do Lixo. O que ? 

Ilha dos Prazeres Proibidos nos leva a uma ilha localizada na costa brasileira, onde a classe média vai para esquecer sua rotina. Um dia, uma agente do estado é enviada em missão até o local, com o objetivo de assassinar quatro pessoas. O mais interessante de Ilha não é meramente o nítido posicionamento político de seu autor, mas a forma como ele manipula personagens e espaços a favor da transposição desse pensamento crítico à ditadura para as imagens. Como ocorreu costumeiramente na pornochanchada, o chamariz do longa são os corpos, os beijos e tiros. A praia com pessoas seminuas é a fachada de um filme que, sob um olhar um pouco mais carinhoso, apresenta muito mais. 

A obra de Reichenbach faz um verdadeiro contrabando ideológico por trás de suas cenas de sexo. A câmera de Reichenbach e a montagem de Walter Wanni são praticamente um deboche. No clímax, por exemplo, quando a agente termina sua missão e, voltando da ilha, é assassinada, a câmera logo corta para uma cena de beijo na praia na qual a câmera gira em torno dos personagens. Como se o filme não pudesse, em virtude da ditadura (vale lembrar que a turma da Boca do Lixo teve dezenas de projetos censurados nos anos 70 e 80), encerrar sua narrativa com uma imagem de violência, precisasse fingir estar alienando, quando na verdade, estava satirizando essa necessidade. 

Saindo um pouco do Brasil, é interessante ver como essa ideia de utilizar o cinema para defender ideias disfarçadas sob a forma e o estilo do filme é trabalhada pelo mundo. Se formos para a Itália, que depois da Segunda Guerra, teve no neorrealismo a expressão máxima da situação social e política de seu país, observamos que, após o partido Democracia Cristã assumir o poder, filmes com temas “polêmicos” passaram a ser censurados. O neorrealismo, aos poucos, era abafado e morria. Em Arroz Amargo, de 1949, porém, Giuseppe De Santis também faz o seu contrabando. 

Disfarçado sob uma trama de investigação de um roubo, Arroz Amargo tece comentários bastante críticos aos problemas sociais da Itália do período. Mas o que as obras de De Santis e Reichenbach têm em comum? O uso dos corpos. Se Arroz Amargo tem como uma das suas “distrações” a constante busca da câmera pelas curvas dos corpos femininos, sempre vestidos com roupas que acentuam a beleza das atrizes, Ilha dos Prazeres Proibidos faz o mesmo quando a câmera de Reichenbach aproxima-se de seios, pernas e sorrisos femininos enquanto comentários que expõem a natureza crítica da obra são apresentados. 

No caso de Ilha dos Prazeres Proibidos, é bastante interessante o fato de Reichenbach utilizar justamente corpos nus para ludibriar uma parcela da audiência, pois expõe a hipocrisia de uma camada da sociedade que é justamente tão conservadora e reacionária, enquanto a hipnotiza com a beleza das atrizes. Quando a agente expressa pela primeira vez sua intenção de assassinar uma personagem específica, a montagem logo corta para uma imagem dessa mesma personagem transando com seu namorado. A violência sempre é sucedida pela carne, pelo desejo. 

Assim, fazendo filmes capazes de passar pela censura e agradar aos interessados apenas pelos corpos, Reichenbach e De Santis foram capazes de fazer o que podemos chamar de contrabando ideológico. Não há doutrinação ou alienação, mas, basicamente, o oposto disso. No caso da filmografia de Reichenbach, a proposta é justamente inserir sátiras e expor os problemas de nossa sociedade imageticamente, pelo cinema. Ilha dos Prazeres Proibidos vai muito além de seu conteúdo, muito além de ser um filme que apenas grita “ditadura é ruim”. Carlos Reichenbach opera nas sutilezas. A descrição feita para um dos personagens é perfeita para definir o próprio autor: assim como o Luc de Ilha dos Prazeres Proibidos, Reichenbach foi uma raposa, um contrabandista de ideias e mitos.