A Última Noite (2002) é um filme sobre vazios. As imagens da cidade de Nova York sobre as quais transcorrem os créditos iniciais já anunciam isso, ao tornarem muito presente a ausência das torres gêmeas do World Trade Center. Elemento recorrente da paisagem nova-iorquina desde a década de 1970, inclusive no cinema, os prédios derrubados por terroristas são aqui substituídos por dois potentes feixes de luz que, alcançando o céu, criam, acompanhados pela grandiosa e lamentosa música de Terence Blanchard, uma impressão fantasmagórica ao mesmo tempo bela e aterradora.
Há perda e luto por todo o filme. O enredo, no entanto, não trata diretamente dos acontecimentos trágicos de 11 de setembro de 2001, mas de um traficante de drogas, Monty (Edward Norton), experimentando as últimas horas de liberdade antes de se entregar à polícia para cumprir um pena de 7 anos de prisão. Essa história, dotada de grande peso dramático e muito bem conduzida por Spike Lee, estabelece pontos de contato com os ataques terroristas da Al Qaeda que passam longe da obviedade. Os parnasianos da crítica cinematográfica, adoradores de roteiros bem amarrados, talvez chamassem de forçadas ou aleatórias as rimas entre o drama pessoal de Monty e a tragédia de uma cidade. Mas elas se formam lindamente na concomitância da sensação de vazio e do desejo de uma história alternativa que engendram.
Os personagens de A Última Noite tocam suas vidas. Jacob (Philip Seymour Hoffman) e Frank (Barry Pepper), os amigos do protagonista, trabalham, conversam, comem, bebem. Monty se preocupa com seu futuro na cadeia, com a identidade de quem o entregou, com o sofrimento da namorada Naturelle (Rosario Dawson) e do pai (Brian Cox). Mas, ainda assim, permanece a sensação de que algo está faltando. Há um peso sendo exercido sobre essas figuras que extrapola suas questões pessoais: é o sofrimento de uma cidade, a ausência dos milhares que, repentinamente, deixaram de existir, seus gritos inaudíveis que parecem ainda ecoar em Nova York.
Spike Lee, cineasta de identidade fortemente nova-iorquina, também estava, ali no momento de realização do filme, processando esse luto. A Última Noite, de quando em quando, interrompe o desenrolar do enredo para concretizar o vazio exibindo fotos de bombeiros mortos no 11 de setembro, homenagens feitas pelos sobreviventes e, principalmente, a retirada dos escombros do lugar onde ficavam as torres gêmeas (numa cena muito impressionante em que Jacob observa, da janela do apartamento de Frank, esse trabalho doloroso e necessário). Mas mesmo que o filme retorne ao passado para apresentar momentos importantes da trajetória de Monty, ele nunca o faz para mostrar as torres ainda de pé ou as mais que conhecidas cenas do atentado. Lee não parece ter estômago para tal. São imagens que faltam, ausências que persistem em A Última Noite.
É interessante colocar essa opção em perspectiva com o cinema do próprio Spike Lee. As cenas dos dois aviões sequestrados se chocando contra os prédios do World Trade Center estão entre aquelas que redefinem as formas do cinema olhar para o mundo. A assunção dos terroristas a uma posição de verdadeiros metteurs en scène, que conduzem uma violência sempre filmada, tornada espetáculo político mas sobretudo estético, se fez presente em muitos filmes desde então – dos que reverberaram imediatamente a “guerra ao terror” empreendida pelo governo Bush ao recente (e muito bom!) Domino (2019), de Brian De Palma.
Pouco mais de 10 anos antes, a filmagem clandestina de policiais de Los Angeles espancando Rodney King, trabalhador negro parado por dirigir em alta velocidade, também produziu forte impacto sobre o cinema de uma geração. A possibilidade de uma violência racialmente motivada registrada por uma câmera de vídeo permeou filmes dos anos 1990. No magnífico Malcolm X (1992), Spike Lee foi literal nesse sentido, abrindo a narrativa com as próprias imagens de King apanhando da polícia, enquanto uma bandeira dos Estados Unidos pega fogo.
Essa frontalidade, tão característica do cinema de Lee, não se manifesta na relação com as cenas do 11 de setembro em A Última Noite. Talvez porque esses dois registros audiovisuais de atos de extrema violência possuam naturezas e sentidos bastante diversos. Os policiais racistas que espancaram Rodney King não desejavam ser filmados. Os terroristas que lançaram os aviões contra o World Trade Center, sim. A câmera, no primeiro caso, se tornou arma das vítimas. No segundo, instrumento de espetacularização das ações dos algozes.
Daí ser importante o não mostrar em A Última Noite. É uma opção que passa não só pelo processamento do luto e pelo reconhecimento da ausência, mas também por rejeitar o engajamento num movimento de reverberação das vozes dos perpetradores da violência. Interessa a Lee as vítimas, no caso, os nova-iorquinos enquanto entidade coletiva. O filme é uma homenagem à cidade, com todas suas contradições e tensões, expostas, aliás, com brutalidade na cena do monólogo de Monty diante do espelho. Mas elas parecem eclipsadas pelo elogio da resistência de Nova York à barbárie.
Importa também, então, o que o diretor escolhe mostrar, especialmente no encerramento de A Última Noite: justamente aquilo que provavelmente não aconteceu, a história alternativa da vida do protagonista, nascida dessa capacidade do nova-iorquino de perseverar perante o sofrimento, que o personagem do pai verbaliza. Esse final é lindo por revelar a recusa de Lee a se entregar à desesperança. É preciso retirar os escombros. Escapar da justiça, assumir nova identidade. Reconstruir.