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Adeus Cinema, Adeus Truffaut, Adeus Dragon Inn

Uma sala de cinema quase vazia. Na tela brilham cenas de um filme clássico de duelos de espadas taiwanês wu xia pian. O som dos diálogos se propaga no ambiente escuro, acompanhado do ruido inconfundível da projeção rodando a película, a tal mágica do movimento. Em contra plano, o olhar fixo levemente para cima de dois ou três espectadores enfeitiçados pelo fenômeno audiovisual contrasta com os olhares vagantes daqueles que procuram ao redor afeto e conexão, não com as sombras dos seres projetados acima, mas com aqueles encarnados anônimos que compartilham a experiência sentados ao lado na imensa e lacunar plateia. Fora de campo, os funcionários do espetáculo transitam como entidades em algum lugar fora da magia. “Fantasma”, é o que um homem diz no corredor entre o banheiro. “Esse teatro é assombrado”, complementa o mesmo homem. Ao final da sessão dois homens mais velhos se reencontram e comentam: “Não vejo um filme há muito tempo”, “ninguém mais vai ao cinema. E ninguém lembra de nós mais.” Esta é uma breve descrição do filme Adeus, Dragon Inn (2006), de Tsai Ming Liang, um retrato nostálgico das práticas e personas daquele cinema que foi o espírito do tempo moderno, o cinema projetado, o cinema que dura até o seu fim.

Tsai Ming Liang e a dilatação do tempo banal

Quando entrevistado, Tsai Ming Liang diz que seus filmes refletem sua vida. O sentimento diaspórico, por vezes melancólico e nostálgico de não pertencimento e deriva que paira sobre sua filmografia, é acentuado talvez porque Tsai é um cineasta que se encontra entre países. Ele nasceu e cresceu na Malásia, mas se mudou para Taiwan na década de 1970 para estudar cinema e a partir de então acabou produzindo seus filmes por lá. Muitos o localizam numa segunda geração do Cinema Novo Taiwanês, movimento que colocou Taiwan nos holofotes da crítica internacional nos anos 1980, conduzido por cineastas que defenderam uma reconfiguração na linguagem e na maneira de produzir seus filmes ao retratar uma cultura e identidade taiwanesas em transição. São filmes que têm como contexto o impasse entre um passado rural marcado pela incerteza em face das novas relações afetivas, familiares e trabalhistas presentes no emergente centro urbano contemporâneo e pós-industrial.

Seu estilo cinematográfico é marcado por um certo minimalismo que o coloca no centro das discussões do atual cinema contemporâneo: vemos planos longos e estáticos, ouvimos poucas palavras ou quase nenhum diálogo. Tsai, em seus curtas e longas, transforma os gestos dos corpos dos seus personagens e o cotidiano ao redor deles em uma espécie de tela hipnótica. A experiência banal do ordinário é tão imersiva e com uma temporalidade própria que mal se consegue piscar ou respirar. Acompanhamos demoradamente gestos de mãos que lavam e cozinham, bocas que comem, pernas que andam e que esperam, corpos que dormem, se masturbam e urinam. São corpos que estão ora em inércia, ora em movimento, corpos que transitam pela cidade e dentro de apartamentos. Mas não se engane, desse aparente lugar banal do cotidiano, Tsai transforma a encenação em ações poéticas, muito longe de servir para uma lógica linear narrativa.

O apego à duração, ao silencio e à solidão intensificam os temas que orbitam sua filmografia: isolamento, incomunicabilidade, desencontro, identidade, sexualidade e anonimato nos centros urbanos. É um diretor que tenta fazer uma verdadeira contemplação e estudo dos corpos sociais no espaço e tempo contemporâneo em busca de afeto.

Tsai e Truffaut, Hsiao Kang e Antoine Doinel

A filmografia de Tsai é um fluxo. Desde sua estreia em 1992 com o longa Rebeldes do Deus Neon, os seus filmes se conectam da mesma forma que os seus personagens anseiam em estabelecer uma conexão entre si, isso devido a Tsai usar quase sempre os mesmos atores, fazendo os mesmos papeis ou análogos. Quando o filme termina, os personagens extrapolam os limites do fim imposto e revivem sendo eles mesmos em outros filmes do diretor e que não necessariamente têm alguma continuidade. Tsai criou uma espécie de universo diegético em que habitam esses personagens. Uma das maiores parcerias é o ator Lee Kang-sheng, que é protagonista em diversas histórias performando o personagem Hsiao Kang, o vemos em várias etapas da sua vida, da juventude até a vida adulta. De forma análoga, lembra a relação que o diretor francês François Truffaut tinha com o ator Jean-Pierre Léaud, que vivia o papel de Antoine Doinel em uma série de filmes que traçam a trajetória e formação do personagem desde criança.

Essa ligação Tsai e Truffaut não é mera sincronicidade e coincidência, podemos identificar a intencionalidade de Tsai em incorporar sua cinefilia nos filmes como tributo e identificação de um passado cinéfilo. Antoine Doinel e Hsiao Kang irão se cruzar no universo diegético de Tsai, mas não no espaço físico, apenas no tempo fílmico em algumas cenas do longa Que horas são aí? (2001). Nele, Hsiao Kang está em luto pois o pai morreu, sua mãe está obsessiva com a ideia de que o falecido vai reencarnar em qualquer animal vivo na casa e a garota que ele acabou de conhecer viajou para Paris. Diante da impossibilidade do afeto pela distância espacial, Hsiao quer a todo custo estabelecer uma ligação com a França modificando todos os horários dos relógios ao seu redor com o horário francês, mas isso não parece o suficiente, é preciso viver o tempo francês. Dessa forma, Hsiao pergunta a um vendedor ambulante de filmes se há algum que mostre a França, especialmente Paris, e o vendedor então lhe sugere Os incompreendidos (1959), de Truffaut. Na cena seguinte, vemos Hsiao em casa assistindo na tela pequena da sua televisão as peripécias de Antoine Doinel criança pelas ruas de Paris. Hsiao faz de Doinel um avatar para se transportar para Paris, possibilitar viver e sentir aquela experiência. Hsiao e Doinel sozinhos contra o mundo.

“Esse filme parece trazer uma noção ou sentimento que atravessa fronteiras. Ele cria um espaço que você pode completar com a sua vida. Esse espaço para mim era desconhecido. Eu nunca tinha ido para Paris, nunca tinha ouvido falar desse lugar. Mas ao ver o filme, conheci Paris, e vi um pouco de mim lá.”

(Tsai Ming Liang, em entrevista)

A ironia em Tsai de evocar o desencontro quase como um mal do século contemporâneo vai fazer com que a garota que Hsiao busca se conectar encontre ao acaso, em um cemitério de Paris, o ator Jean-Pierre Leaud já velho. Ambos estão sentados em um banco, entretanto ela não faz ideia de quem ele seja e os dois apenas trocam poucas palavras. Nessas cenas, vemos a homenagem nostálgica direta de uma prática cinéfila intensa, ou seja, vestígios de uma época que não só uniu Truffaut e os outros cineastas da Nouvelle Vague, mas entusiastas do cinema pelo mundo todo, como Tsai na Malásia e em Taiwan. Entretanto, vemos também a crença de Tsai em entender o cinema como uma alternativa de conexão, quando na realidade material isso não é possível. A crença na magia do cinema ser a possibilidade de estabelecer relações de identificação e afeto entre pessoas reais e personagens ou lugares distantes. E isso acontece por causa da sua particularidade de reter o passado, transformar aquilo que já existiu e passou em registro estático, mas sua mágica não para por aí, pois o cinema possui também o poder de reanimar o passado em uma espécie de manipulação do tempo, aprisionando-o em movimento na duração do filme. O tempo fílmico une o real e o imaginário, passado e presente. É uma arte nostálgica por excelência. Durante o filme experimentamos e sentimos genuinamente emoções a partir do tempo passado construído. 

O cinema nasceu para ter um fim, viva o cinema

Querendo ou não, esse é um debate que toca nas discussões sobre a especificidade do cinema. Desde o seu nascimento, o cinema está em constante transformação, há quem diga que sua morte é inevitável. Outros, ao contrário, dizem que sua sobrevivência se mantém nas imagens do mundo cada vez mais audiovisual e digitalizado. Com o avanço tecnológico, surgem novas mídias de produção e reprodução de imagens que se hibridizam, tornando-se mais difíceis de categorizar: televisão, videocassete, DVD, torrent ou Netflix. Diante dessas ramificações cada vez mais individualizadas de espectatorialidade, nos perguntamos: o que é cinema? quando é cinema? onde acontece o cinema?

“A sessão, como modo de passar do filme, é o que existe de mais particular ao cinema. (…) O tempo do filme é sua essência, pois sua matéria é feita de imagens móveis de coisas, corpos, ruídos, música, fala, elementos do mundo que, por excelência, caracterizam-se no transcorrer, pelo durar.”

(Fernão Ramos)

Essa passagem de Fernão Ramos no artigo “Mas afinal, o que sobrou do cinema?” (2016) vai ao encontro da ideia de especificidade do cinema sentida nos filmes de Tsai, que seria a seguinte: a ideia de o cinema ser um filme duração que passa pela transformação do tempo a fim de instaurar emoção. E esse teria um fim. O jogo do cinema seria exatamente isso, nós espectadores temos um pacto que dura até o final, sabemos que o filme acaba e essa é a brincadeira.

Intersecção entre filme morto e filme vivo

Em Que horas são aí? Tsai elege o tempo, especialmente o cinematográfico, como a forma de conectar pessoas e mundos. Dessa forma, o universo fílmico de Tsai não vai só ao encontro da ideia da duração posta por Fernão Ramos. Ele, na verdade, vai até as últimas consequências dessa proposição, ele a extrapola. Vemos que nos filmes de Tsai lançados até então, os planos longos vão se intensificando cada vez mais, o tempo que transcorre no filme transforma a banalidade em eternidade. O cinema de Tsai existe para durar até o fim e persiste na duração, na mise em scene e nos corpos performáticos. Há um plano fixo em seu décimo primeiro longa, Stray Dogs (2013), que dura vários minutos e nele vemos uma personagem quase imóvel olhando um mural. O plano é tão estático e longo que parece que estamos observando uma pintura com uma leve movimentação das pinceladas. Essa ideia da experiência da longa duração do plano reinventa outras formas de espectatorialidade que reconsideram o pacto de atenção, foco e resignação diante da imagem em movimento ininterrupta particular da sessão. Práticas de um cinema à beira da morte em contraste com as telas de múltiplos dispositivos portáteis cada vez mais individualizados, dispersos, fragmentados e controláveis. 

Cinefilia, elegia ou nostalgia?

ci·ne·fi·li·a
Forte interesse ou entusiasmo pelo cinema.

e·le·gi·a
Poema sobre assunto triste ou lutuoso;
Poema constituído por hexâmetros e pentâmetros alternados;
Lamentação.

nos·tal·gi·a
Tristeza profunda causada por saudades do afastamento da pátria ou da terra natal;
Estado melancólico causado pela falta de algo ou de alguém.

A homenagem mais direta desse cinema dito quase morto, o filme duração projetado, é feita por Tsai no longa descrito no início desse ensaio, Adeus, Dragon Inn. Nele Tsai transforma a prática de ver filmes em um registro elegíaco das salas de cinema, dos cinemas de rua e do lugar social que reunia aqueles que amam histórias em movimento. O filme se passa no então Teatro Fu Ho, fadado ao encerramento das atividades, e vemos o que parece ser a última sessão quase vazia que exibe Dragon Gate Inn (1967), de King Hu, um clássico wu xia pian da década de 1960, importante gênero na história do cinema taiwanês que narrava os deslumbrantes duelos de espadas em um passado quase mítico.

Ao final vemos dois senhores, Miao Tian e Shi Juan, que, ao saírem da sessão, se reconhecem e comentam sobre como ninguém parece ir mais ao cinema. O tom de pesar que carrega esse diálogo ganha sentido quando descobrimos que na verdade ambos foram na juventude os atores do filme Dragon Gate Inn. Tsai os escalou para representarem eles mesmos assistindo seu papeis ficcionais no filme projetado. Durante a sessão vemos um plano do rosto brilhante de Shi Juan se emocionando ao ver na tela aquele tempo em que sonhávamos tanto com as fabulações do cinema.

A ideia de cinefilia no dicionário significa entusiasmo pelo cinema, um amor profundo que podemos identificar nessa vontade de Tsai de estabelecer conexões e citações vindas do universo cinematográfico, tanto no encontro entre Hsiao Kang e Antoine Doinel, como também em eternizar o lugar único que as salas de cinema ocupam na memória humana. Na medida em que ele retrata uma sala de cinema em vias do desaparecimento exibindo um filme que remonta a um passado cinéfilo especifico taiwanês, a linha tênue entre nostalgia e elegia é posta. Seria este o último vestígio e esperança em uma prática, que talvez nunca mais volte a ser aquilo que era antes, e por isso merece ser imortalizada ou seria esta a última despedida, um lamento de morte e canto fúnebre final daquilo que já se encontra morto e enterrado?

Esse lamento parece estar mais relacionado com a morte de uma forma específica de cinema que dominou o século XX, que supõe um espectador – na maioria das vezes – imerso no escuro de uma sala de exibição tradicional, onde histórias em forma de imagens em movimento são projetadas em uma tela branca. Entretanto, a persistência de uma cultura e a especificidade da prática cinematográfica moderna continua, na tela do meu computador, na tela do seu celular e nas telas do mundo inteiro. Afinal, independente do lugar e do dispositivo, assistir um filme é suspender o tempo, é concordar em ser arrebatado pelo trem desgovernado que são as imagens e as emoções que elas despertam. Você não sai ileso.