Skip to content

Além da Vida, de Clint Eastwood

O cinema de Clint Eastwood tende a privilegiar uma relação mais direta com o mundo. Talvez por isso elementos sobrenaturais raramente apareçam em seus filmes. O mundano predomina sobre o transcendental. Há exceções: O Estranho Sem Nome (1973) e O Cavaleiro Solitário (1985) têm protagonistas meio fantasmagóricos, que entram e saem de cena como anjos vingadores, mas nada além dessa sugestão; já Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal (1997) e Além da Vida (2010) incorporam abertamente o fantástico em suas narrativas, ainda que apenas no segundo haja uma centralidade do tema.

O interessante em Além da Vida é que essa abertura ao sobrenatural se dá na mesma lógica frontal característica de Eastwood. Nesse filme, a vida após a morte simplesmente existe, não há qualquer espaço para a dúvida. Marie Lelay (Cécile de France), a jornalista francesa sobrevivente do devastador tsunami que atingiu a Indonésia em 2004, de fato estabeleceu um contato com o plano dos mortos. A câmera do diretor mostra isso acontecendo. O médium George Lonegan (Matt Damon) nunca tem suas visões exibidas, apenas narradas, mas o dom do personagem jamais é questionado – pelo contrário, é usado por Eastwood como um artifício dramático bastante poderoso, gerador inclusive da cena de maior carga emocional de Além da Vida. Por fim, o filme indicia a presença fantasmagórica do irmão gêmeo do garoto Marcus (os dois interpretados por Frankie e George McLaren), inclusive salvando sua vida no atentado a bomba no metrô de Londres, em 2005.

O que move Eastwood não é a investigação sobre a possível existência de vida após a morte. Aliás, até há um mote desse tipo no enredo, mas que é tratado com certo desleixo: Marie vai até uma clínica para pessoas em estado terminal, conversa com uma especialista, sai com algumas caixas cheias de documentos que comprovariam a continuação da existência em outro plano e pronto, assunto encerrado. “Está tudo aqui. As provas são irrefutáveis”, diz a médica à jornalista. Interessa ao diretor observar os vivos se relacionando, em diferentes aspectos, com a consciência da sobrevivência dos mortos. A definição desse enfoque permite a ele retomar uma velha obsessão de seu cinema: a solidão do homem amaldiçoado por seu talento.

George é o verdadeiro protagonista de Além da Vida. Ele é o personagem essencialmente eastwoodiano aqui. Como William Munny, de Os Imperdoáveis (1992), e Chris Kyle, de Sniper Americano (2014), o sujeito tem um dom e sofre as consequências por isso. Munny e Kyle são especialistas em matar. George consegue se comunicar com os mortos. Todos são figuras solitárias, como que incapazes de se conectar completamente com os vivos por estarem sempre tão próximos da morte. Não é à toa que Sniper Americano e Além da Vida repetem um plano praticamente idêntico, que enquadra seus protagonistas de costas, sozinhos, emoldurados por portas estreitas, composição que remete ao melancólico final de Rastros de Ódio (1956), de John Ford.

Mas Além da Vida é um filme essencialmente otimista. O próprio pressuposto da vida após a morte, sem qualquer filiação ao gênero horror, já sinaliza isso. Eastwood ainda povoa a história de personagens bondosos. Mesmo aqueles que poderiam desempenhar papeis com alguma dose de vilania, como a mãe viciada de Jason e Marcus, os assistentes sociais que intervêm na família (representantes do Estado, que o diretor costuma tanto criticar) ou o irmão ambicioso de George (que lembra um pouco os parentes da protagonista de Menina de Ouro), acabam se revelando pessoas boas. É como se Eastwood modulasse seu olhar ao se abrir para duas possibilidades: a da sobrevivência à morte e a de um cinema que lide com esse tema. Algo compreensível para um homem, àquela altura, com oitenta anos e plena realização profissional – não à toa, ao menos outros dois filmes do diretor dessa época, Gran Torino (2008) e Invictus (2009), também são bastante otimistas no trato de seus temas, ainda que, nesses casos, reverberando um momento de expectativa de cura de velhas feridas sociais, por conta da ascensão de Barack Obama (a despeito do republicanismo de Eastwood).

E aqui vale voltar ao personagem de Matt Damon. George é o portador do talento amaldiçoado, mas sua ação no mundo é positiva (diferente de Munny e Kyle). Ele não só possibilita conforto a pessoas enlutadas, mas também funciona como ponto de convergência das duas outras linhas narrativas, solucionando as angústias de Marie e Marcus. Daí Além da Vida terminar bastante generoso com o personagem: George enfim encontra uma possibilidade de romance em alguém capaz de compartilhar seu olhar para o mundo.

É interessante que Eastwood a princípio filia seu filme a um tipo de narrativa de muito apelo na década de 2000, em que diferentes histórias contadas paralelamente se cruzam para produzir algum tipo de catarse, mas ele faz isso basicamente negando os princípios que regem os principais exemplares desse cinema (Crash, Babel e afins). Não há grandes sacadas de roteiro em Além da Vida, reveladoras de alguma coincidência acachapante, e, sobretudo, não há qualquer perversidade. Esse é um filme que enuncia logo no início sua adesão ao sobrenatural como regra e meta para seus personagens e segue com eles até o fim, comprometido com a promoção de sua felicidade através do reconhecimento pleno dessa dimensão extraordinária.

Em Além da Vida, portanto, Eastwood demonstra ter fé sobretudo no poder das imagens cinematográficas, na sua capacidade de naturalizar o sobrenatural, sem que para isso assumam uma postura doutrinária, e de revelar as múltiplas relações dos homens com o mundo, para além de qualquer mediação pretensamente explicadora. Não à toa, o filme passa ao largo da discussão sobre religiões, dedicando a elas apenas um par de breves cenas (críticas, como de costume no cinema do diretor).