Foi só com Bom Comportamento, de 2017, que os irmãos Josh e Benny Safdie começaram a de fato ter um reconhecimento internacional. Em 2019, lançaram a que é, para mim, até então, sua melhor obra, Joias Brutas, que estuda a relação entre tempo e espaço no coração do capitalismo, sob a perspectiva de um proprietário de uma joalheria que é viciado em apostas. Em comum, ambos os filmes têm, além do estilo urgente e pulsante dos Safdie, o mesmo palco: Nova York. Mas ao falarmos da cidade americana no cinema dos Safdie, precisamos falar também sobre Amor, Drogas e Nova York, longa de 2015 que, por mais que não possua o mesmo reconhecimento que as obras posteriores, apresenta o mais emocional e complexo estudo social da carreira dos diretores.
Amor, Drogas e Nova York é uma semi-autobiografia da pr´´ópria protagonista. Arielle Holmes interpreta Harley, uma jovem viciada em drogas que, junto com seus amigos, perambula pela cidade em busca de dinheiro e da próxima dose. Os Safdie filmam essa história de maneira bem diferente da qual filmam Bom Comportamento ou Joias Brutas. É um filme mais cru, direto e poluído. Não há qualquer esforço para mascarar a ficção, pois a denúncia é real. É comum no filme, por exemplo, o uso do zoom, ferramenta que ficou datada depois da Nova Hollywood e que é constantemente usada por cineastas como Hong Sang-soo justamente para expor a ficcionalidade de uma obra (vide A Câmera de Claire).
Os Safdie nos jogam em um filme que desde o começo busca o desconforto. Somos apresentados aos personagens sem qualquer explicação e, do primeiro momento até o fim, a tragédia parece estar a poucos passos da vida de Harley. A protagonista já começa o longa falando em cometer suicídio para provar seu amor pelo namorado, e tudo é filmado com a já notória trilha frenética dos filmes dos Safdie, além de fazer uso de muitos planos fechados que nos confundem quanto ao que acontece em tela. A confusão chega até mesmo à câmera. Há uma linda cena na qual a lente dos Safdie filmam uma multidão enquanto ouvimos a voz de Harley, até que percebemos que ela não está na multidão, mas isolada, sentada ao chão, distante dela, marginalizada.
Essa estética permanece por todo o filme. Amor, Drogas e Nova York nunca desacelera, mas também nunca engata. É um filme que está sempre perdido entre o ócio e o frenesi. Descompassado e desajustado do começo ao fim. É uma constante sobrecarga de pensamentos, ideias e emoções que os personagens não conseguem conceber, mas vivem intensamente. A linguagem de Amor, Drogas e Nova York é permanentemente suja, encontrando sua força menos na harmonia de um plano bem calculado e mais na desarmonia de seus elementos visuais. A câmera constantemente filma os personagens interagindo nas ruas, entre grandes multidões que parecem totalmente alheias a Harley e seus amigos. São figuras marginalizadas, que parecem habitar um plano diferente dos cidadãos comuns de Nova York.
Outras ideias visuais interessantes constituem esse cenário. A profundidade de campo, por exemplo, é essencial. Os Safdie filmam com muitos close-ups e planos fechados, e em muitas ocasiões com profundidade de campo pequena, embaçando todo o fundo da imagem. São rostos e corpos deslocados dos próprios ambientes pelos quais passam, onde são continuamente desdenhados ou repelidos – como quando os protagonistas são expulsos de uma lanchonete por seu comportamento.
A ideia dos Safdie parece ser encontrar o realismo no uso de uma ficção tão crua, que muitas vezes se assemelha a uma abordagem audiovisual típica do cinema documental, com vozes abafadas pelos som ambiente e cenas que são filmadas de forma que nem vemos direito os personagens, já que suas imagens são atravessadas por carros, árvores e demais objetos da cidade. Harley, Mike, Ilya e cia não encontram espaço para existir, estão na cidade mais capitalista do mundo, onde indivíduos como eles sequer são percebidos como seres humanos.
Nem mesmo a montagem escapa dessa estética, já que os cortes de Ben Safdie e Ronald Bronstein são sempre bruscos, quebrando regras básicas de continuidade de forma proposital para manter essa estranheza. É pelo uso de algumas características típicas do mumblecore – principalmente a crueza estética e algumas atuações amadoras – que os Safdie encontram o caminho para fazer seu filme-denúncia. Denúncia de uma realidade, de um sistema, de uma cidade e de como esses três elementos se relacionam. De como esses três elementos criam e marginalizam pessoas, ao ponto de o mundo não mais os reconhecer como seres humanos. Ao ponto de termos sempre a sensação de que, do primeiro ao último plano, Harley, Mike, Ilya e cia não vieram de lugar algum e nem vão para lugar nenhum. Isolados e presos em um limbo social e econômico do qual não parecem ter nenhuma chance de escapar.
Essa relação de espaços é trabalhada também pelo distanciamento. A câmera não só busca os corpos nas multidões, mas também os encontra isolados, correndo pela cidade em planos aéreos que captam essa constante movimentação dos personagens, que percorrem Nova York sem e fato chegar a lugar nenhum. É como se a câmera procurasse um objetivo que não existe. Acompanhasse essa frenesi e ausência de objetivo e, assim, nos permitisse sentir tão perdidos quanto aquelas pessoas.
A própria escolha de encerrar o filme no meio de uma cena, projetando os créditos enquanto Mike conta uma história para seus amigos em uma lanchonete, evidencia a ideia dos Safdie de fazer de seu filme uma curta janela para termos acesso a um microcosmo que costumeiramente é ignorado. Amor, Drogas e Nova York – ou no excelente título original, Heaven Knows What – é uma breve mas potente viagem ao mundo daqueles que até habitam o mesmo espaço geográfico que nós, mas que no modelo de mundo em que vivemos, nunca habitarão o mesmo espaço social.