I can’t leave my house
Or answer the phone
I’m going down again
But I’m not alone
Com O Irlandês, Martin Scorsese denota uma elipse estética em sua obra muito fácil de ser delimitada pelos recortes de gângsters, mafiosos e figuras do sorte, mas que se vista sob a luz de um grande escopo autoral aponta para uma relação temática muito maior que a vida de arquétipos tão icônicos na cultura popular moderna. Pelos movimentos econômicos, culturais e políticos de filmes como Goodfellas, Casino e O Lobo de Wall Street, Scorsese examina fragmentos de tipos que compartilham entre si um código de ética que os molda pela pressão do existir coletivamente em detrimento do indivíduo, movimento que engrandece e destrói os personagens, e que como um vórtex altera tudo ao seu redor. Irlandês é calcado em fiapos de memória que assombram o Frank Sheeran de Robert Deniro, tecem a teia da narrativa que ele tenta relatar de forma objetiva, memórias já manchadas pelos tons de arrependimento que o atormentam nos seus últimos instantes de vida. Aqui se encontram traços da dureza do Jimmy Conway de Goodfellas e da austeridade do Sam Rothstein de Casino, mas com um Deniro vulnerável e aberto ao fracasso e tristeza.
Settling at last
Accounts of the soul
O Frank Sheeran de Deniro submete sua história às de Jimmy Hoffa (Al Pacino) e Bufalino (Joe Pesci), em um período de tempo que considera sua saída do exército nos anos 50 ao seus últimos dias nos anos 2000, em intervenções que encenam momentos-chave de sua vida. Isso, através de efeitos especiais muito e desnecessariamente discutidos. A representação de figuras jovens nesse contexto transcende o tempo e busca na imagem uma unidade material, um senso de camaradagem e propósito, de pertencimento.
Corpos rejuvenescidos a quem os já não carrega se traduzem em memória e não em matéria, um lembrete físico do que se viveu, sem exatidão e clareza do momento, uma das limitações do cinema. Nesse sentido, a tecnologia viabiliza a reprodução de um sentimento que calca essa imagem como artefato construtor de sentido por si só, independente do dispositivo ou cosmética. A memória se faz necessária para apontar o que Frank vê como suas falhas, mas ainda, como suas glórias. A memória aqui é um acidente, não deveria se revelar.
A memória se deforma, assim como a imagem. Quando Frank se sente acoado em um confronto, o medo em seus olhos é o mesmo que o Frank à beira da morte carrega. Quando ele ainda em sua ascensão na máfia mantém sua postura intransigente em um assassinato encomendado, a figura de um jovem velho ainda espreita a tela, como se a rememoração já estivesse envenenada pelo peso do tempo.
As for the fall, it
Began long ago
Diante dessa invocação à memória, o dilema principal do filme começa a tomar forma tardiamente, desenhando uma vida de, sim, crime e máfia e poder e excesso, porém ainda mais de pessoas, alianças e lealdade. Através do materialismo se cria um caminho ao sagrado, ao abstrato. Por essa trajetória homérica se traçam laços entre humanos que ao final de uma jornada se deparam com o deteriorar do corpo e da mente, sobrando apenas fios de recordações que podem se corroer ou serem condutores para uma redenção espiritual. De que adianta o arrependimento se não há mais ninguém a quem se possa pedir perdão?
But I’m not allowed
A trace of regret
You Want It Darker, disco de 2016 e (oficialmente) último de Leonard Cohen, é uma obra de conciliação. Em Leaving the Table, Cohen escreve o mais próximo que o álbum tem de um confronto direto com uma posição resignada sobre a mortalidade, mediadas, justamente, pela resignação.
I don’t need a reason
For what I became
I’ve got these excuses
They’re tired and they’re lame
Com o primeiro disco póstumo de Cohen, Thanks for the Dance, seu filho Andy cria uma coletânea de ideias que diverge do antecessor por tomar como discurso principal a confrontação com o passado, a reavaliação de um legado em um plano imaterial em termos tanto religiosos quanto mundanos, temas aludidos em You Want It Darker (principalmente em sua faixa título), mas tratados de forma mais distante em favor de uma obra meditativa. Os rascunhos resgatados de Cohen para esse Tanks for the Dance não soam como obras inacabadas mas sim como ruminações cruas e interiores em poesia, citações diretas a acontecimentos e às memórias que construíram seu legado. Se em You Want It Darker Cohen se despedia de forma abstrata, em Thank You for the Dance ele acena ao íntimo em versos pessoais que discorrem sobre medos e aflições.
I sit in my chair
I look at the street
The neighbor returns
My smile of defeat
A imagem de um Cohen envelhecido são entrelaçadas com acenos ao épico. Em canções como Puppet, que parte de cenas do holocausto para contornar o que em primeira impressão soa como amargura e desesperança, ele cria uma imagem em conflito com a introspecção e doçura de faixas como What Happens to the Heart, reflexão sobre o propósito de um individuo em face ao seu ofício e os subterfúgios que se tomam para escapar uma possível ausência de sentido na vida. Mas é em The Goal que Cohen faz um movimento interessante em direção a uma escrita que joga luz sobre toda sua obra, que escancara os aspectos mais pessoais de sua arte ao mesmo tempo que as envolve em uma aura de misticismo também sempre presente em suas composições. The Goal articula um vazio que pode existir no acúmulo de vida e as consequências de erros que se somam a esse vazio: ao se deparar com a solidão não há nada pra se ensinar e nem nada para se ruminar, apenas as sombras do que poderia ter sido, se uma palavra tivesse sido dita, se uma escolha não tivesse sido tomada.
Esse senso de esvaziamento é algo que You Want It Darker não usa como camada de texto, e legitimamente, mas que com Thanks for the Dance cria uma coletânea de versos que habitam o mesmo universo imagético, de forma antagônica, mas complementar. Em uma analogia rasteira, o quebra-cabeças se completa.
No one to follow
And nothing to teach
Except that the goal
Falls short of the reach
Ambos Irlandês e Thank You for the Dance encenam lógicas internas misteriosas e articuladas, passeando entre o pessoal e o grandioso para evocar um sentimento de diminuição até um estado de puro e completo vazio, onde raiva e remorso não conseguem ser tão poderosos quanto o amor. É nisso onde Scorsese e Cohen encontram o divino. É ao fim que eles vislumbram a esperança, um sopro de significado que vai além do niilismo que a aproximação do fim pode representar em leitura traiçoeira.
A imagem-memória e imagem-matéria não representam a verdade ou muito menos são fieis à realidade, mas partem de uma busca por aceitação. Nessa cartografia em que violência e solidão são motores para viagens distintas é que ambos autores desenvolvem ideias similares sobre a vida e o amor, sobre como não há nada mais sagrado que a amizade e nada mais violento que a inconfidência. Não existe o divino ou o cruel sem antes existir o humano.