O cinema de Juliana Rojas é bastante variado, mas seus filmes tem sempre um ponto de partida similar. É a partir de pessoas e espaços ordinários e eventos totalmente mundanos que a diretora dá o pontapé de suas histórias. Uma babá da periferia de São Paulo que vai trabalhar na casa de uma grávida de classe média; um coveiro de um cemitério que vive um conflito ético em relação às intenções da administração do cemitério para com os restos mortais dos ali enterrados; uma mulher de classe-média que compra um mercadinho enquanto seu marido, recém-demitido, tenta se reinserir no mercado de trabalho. Porém, é por essas histórias que Rojas constrói, usando a fantasia, comentários muito lúcidos sobre nossa sociedade.
O que diferencia seu trabalho de tantos outros do cinema nacional e internacional com pautas políticas inerentes às narrativas é a forma como Juliana usa o fantástico como holofote para os problemas que percebe ao seu redor. É como, partindo do cotidiano, ela chega à fantasia e a usa para superexpor questões e dilemas desses espaços comuns. É o uso do fantástico como meio para que o que há de mais grave na sociedade deixe de ser mundano e passe a ser visto como inaceitável justamente por ser típico de uma narrativa fantástica e, muitas vezes, sombria.
A grávida de classe média pare um lobisomem; os funcionários do cemitério começam a se expressar cantando; a empreendedora começa a encontrar restos humanos e itens que remetem ao período escravagista nas paredes podres do mercado. O fantástico invade o terreno de maneira inexorável, mas sempre mantendo os acontecimentos rotineiros como base para as narrativas. No fim, o que fica registrado desses eventos nunca é seu lado fantástico, mas o que possui apelo mais urgente dentro das demandas da sociedade. O que se torna uma matéria de jornal é a mudança das covas para abertura de novos espaços no cemitério. As presenças místicas do cinema de Rojas chegam não para substituir o banal, mas evidenciar o que há de errado e bizarro nessa banalidade.
O que se sobressai, portanto, é o uso da fantasia para atrair nossa atenção para acontecimentos e sistemas que existem em nossos arredores e que acabam sendo invisibilizados. O lobisomem de As Boas Maneiras é apenas uma forma fabulesca de projetar no cinema a forma como a sociedade enxerga e trata um menino periférico. Os instrumentos de tortura nas paredes em Trabalhar Cansa estão lá para mostrar a herança maldita da escravidão nas relações de trabalho e classe contemporâneas. Entretanto, é curioso como Juliana tende sempre a abrir e fechar suas histórias com momentos ordinários – potencializando essa ideia de que o fantástico é apenas um dispositivo artístico para atrair nossa atenção para o real.
A diretora consegue construir suas obras partindo sempre de perspectivas diferentes. Se Sinfonia da Necrópole o recorte é de um homem trabalhador que ocupa a posição mais frágil das relações de trabalho e que aos poucos constata como, no capitalismo, até os cadáveres precisam ser “produtivos “, precisam dar “lucro” para o empresário, em Trabalhar Cansa já é diferente. Nesse filme, a cineasta nos dá o olhar da mulher branca de classe média-alta que está no topo das relações de poder e praticamente desumaniza seus funcionários ao passo que, assim como os chefes do coveiro em Sinfonia, não vê qualquer utilidade (ou sequer humanidade) no proletário que não serve de cabeça baixa.
Juliana constrói até aqui uma carreira que utiliza as possibilidades narrativas dos gêneros (terror, musical e fantasia) para dar holofote às formas variadas de violência que já estão normatizadas e até institucionalizadas na sociedade. É um cinema que, em vez de partir do ordinário para o fantástico, apenas utiliza o fantástico para tornar visível o que há de absurdo no ordinário. Um cinema que é, ao mesmo tempo, politicamente engajado, mas esteticamente muito arrojado. Há poucos realizadores no Brasil (e no mundo) que, na contemporaneidade, demonstram tanto domínio sobre a relação de forma, estilo e conteúdo em seu cinema como Rojas.
O que se tira disso é que essa artista não é uma pessoa que instrumentaliza a arte para fazer política e nem usa a política para criar arte. Na verdade, a jovem mas extremamente madura diretora parece se colocar como uma observadora do mundo capaz de equilibrar perfeitamente arte e política, sempre em busca de histórias simples e de fácil identificação para construir então a aliança perfeita entre a potência dos gêneros e a constatação dos microproblemas que habitam nossa esfera social. Rojas é, à sua maneira, uma cineasta em busca de notas de rodapé, que persegue histórias que eu e você já vimos, ouvimos ou vivemos nos mais distintos ambientes. Seu cinema se tornou talvez o mais conciso para entender as problemáticas de poder e disputa de classes do Brasil atual.
É claro que seu parceiro Marco Dutra também tem parte nisso. Co-diretor de As Boas Maneiras e Trabalhar Cansa, o diretor ainda deu as caras recentemente no interessante mas irregular Todos Os Mortos, que também explora as origens dos problemas sociais do Brasil levando o espectador a visitar o Brasil do século XIX. Entretanto, Dutra parece ser a metade da parceria que mais trabalha a parte da herança, da ancestralidade, enquanto Rojas, por Sinfonia, pode-se dizer estar mais próxima de contar as histórias da atualidade; de encontrar os universos formados pelas vidas das pessoas de espaços tão normais quanto um supermercado ou um cemitério.
Talvez o grande sucesso de Juliana seja nunca tentar escalar muito os eventos de suas histórias. Elas se passam quase que exclusivamente nesses espaços de trabalho reduzidos, que formam microcosmos a serem dissecados. A diretora retrata personagens e mundos inteiros que estão ao nosso redor a todo momento, mas que passam despercebidos. Seu sucesso está em usar o fantástico para virar nosso olhar para cada podridão que se esconde atrás de um balcão de mercado ou além dos portões de um cemitério. É o cinema que joga luz e misticismo no que deveria ser excepcional, mas não é; no que deveria nos espantar, mas que já é intrínseco à nossa cultura. E o faz na esperança de que uma matéria sobre um trabalhador sendo explorado deixe de ser apenas mais uma notícia típica no telejornal da tarde.