Há uma polissemia bastante possibilitadora em Memórias de um Estrangulador de Loiras (1971), obra-prima que Júlio Bressane realizou no exílio londrino, durante os anos mais duros da ditadura militar brasileira. Não tanto no sentido da decifração de códigos obscuros, já que os acontecimentos do parco enredo são mostrados com bastante clareza ao longo de pouco mais de uma hora, mas sim da abertura para leituras gerais do filme, de seus possíveis propósitos, bastante diferentes entre si.
O tratamento quase sempre distanciado dado às sucessivas cenas de assassinato, mera observação de um ato abominável igualado nesse procedimento a outros absolutamente cotidianos (o protagonista, interpretado pelo magnético Guará Rodrigues, sentado no vaso sanitário ou cozinhando, por exemplo), permite uma interpretação do filme a partir da lógica da banalização do mal, explicitação da incapacidade de um psicopata atribuir qualquer valor à vida humana.
Mas é possível também reconhecer em Memórias de um Estrangulador de Loiras a presença de uma dimensão política, manifesta na condição de exilado do diretor e transposta para o serial killer brasileiro em Londres. O homem subdesenvolvido mata, repetidamente, mulheres que carregam na aparência a histórica dominação colonial. Ecos da violência de classe e também serial de Cuidado Madame (1970), filme anterior de Bressane.
“Somos o que a civilização chama de inumano”, escreve o protagonista em suas memórias, essa “civilização” podendo se referir tanto à noção totalizante de humanidade, da qual o assassino destoaria por suas práticas, quanto ao Ocidente imperialista, colonizador, discriminador daqueles que considera inferiores (latino-americanos aqui incluídos). O estrangeiro como alienígena – os termos são sinônimos – infiltrado, precariamente disfarçado (apesar das roupas condizentes com a Londres da década de 1970, o fenótipo de Guará Rodrigues denuncia suas origens), eliminando aquelas que o desprezam e tratam como ameaça. Um filme de horror semelhante a Alien – O 8º Passageiro (1979), de Ridley Scott, e O Enigma de Outro Mundo (1982), de John Carpenter.
Trata-se de um olhar muito duro para a experiência do exílio, concretizado também na própria falta de palavras ao longo de Memórias de um Estrangulador de Loiras. A precariedade da produção num contexto de dificuldade em outro país, impeditivo para a captação de som direto ou mesmo de dublagem, se encontra aqui com a incomunicabilidade e a solidão como temas inevitáveis de um filme do e sobre o exílio.
Memórias de um Estrangulador de Loiras é radicalmente moderno, metalinguístico, experimental. Essa é outra entrada possível no filme, até mais interessante (e coerente com a obra do diretor) que as anteriores: o cinema como exercício, brincadeira, jogo. Característica que salta aos olhos quando se atenta para o fato de que Bressane está basicamente testando formas distintas de filmar um assassinato. Através de um espelho, por trás de uma cortina, com a câmera se aproximando ou se afastando da cena do crime, em plongée ou contra-plongée, mantendo-se num plano-detalhe dos pés do assassino e da vítima ou estática enquanto eles deixam o quadro etc.
A lógica do jogo inclusive embaralha a diegese e a arquitetura fílmica nos momentos em que Bressane coloca o protagonista para matar várias mulheres posicionadas em espaços distintos do quadro. Os testes de filmagem permanecem (planos bem abertos, com grande profundidade de campo), ao mesmo tempo que o serial killer, agindo no interior da narrativa, tem que encontrar a ordem ideal das vítimas para evitar testemunhas. Coisa de gênio.
Antes de ser sobre psicopatia, misoginia, xenofobia, colonialismo ou mesmo o exílio, esse é, portanto, um filme sobre a câmera de cinema e as relações que ela estabelece com os corpos dos atores e com os espaços registrados. Os códigos hitchcockianos – a música e o plano-detalhe da água descendo por um ralo que lembram Psicose (1960), o close nos olhos de Guará Rodrigues que remete aos créditos iniciais de Um Corpo que Cai (1958) – ou genéricos como um todo – o psicologismo manifesto numa suposta angústia do assassino e em cenas de uma infância que explicaria de alguma forma suas ações, os rituais antes de cada crime – soam como mero deboche bressaniano, demonstrações de um domínio exercido pelo diretor em prol do exercício de linguagem.
Alguns dos planos que abrem Memórias de um Estrangulador de Loiras revelam breves momentos dos bastidores, uma atriz aparentemente errando a entrada em cena, Bressane interagindo com os atores e com a câmera. Num momento já adiantado da narrativa, uma das vítimas do protagonista se levanta após ter sido “morta”, antes da interrupção do plano, o que configuraria, dentro de um cinema naturalista e convencional, um erro. Aqui, no entanto, esses pequenos trechos funcionam como uma espécie de aviso irônico do diretor a eventuais críticos do conteúdo mostrado: ninguém foi realmente assassinado em Memórias de um Estrangulador de Loiras. É só cinema.
E, para Bressane, o cinema pode falar do que quiser, como quiser, pois ele nunca é transparência. Sempre há mediação, o protagonismo real é necessariamente da câmera. Nesse sentido, com Memórias de um Estrangular de Loiras o diretor constrói um pujante filme-manifesto modernista, experimental (ainda que muito mais acessível na comparação com seus outros trabalhos no exílio, pois dotado de um impulso narrativo derivado do diálogo com códigos de gênero) e debochado. E sem que uma palavra precise ser dita.