Amarga Esperança e No Silêncio da Noite não são exatamente filmes sobre a solidão de seus protagonistas, mas ela está a todo momento rondando e determinando o destino dos personagens. No primeiro, um jovem que cresceu na prisão e experimenta o amor pela primeira vez enquanto tenta escapar de seu passado no crime. No segundo, um roteirista respeitado de Hollywood se apaixona pela vizinha, que também o ama, mas suspeita de que ele possa estar envolvido em um assassinato.
Ray lida com a solitude de formas bem distintas nos dois filmes. Em Amarga Esperança, ela parece ser uma maldição. O criminoso está fadado a viver uma vida solitária em virtude de sua posição marginal, e um desvio desse caminho pode resultar em uma tragédia que parece estar à espreita, na próxima esquina ou no próximo plano. Em No Silêncio da Noite, a solidão também acompanha seu protagonista, mas está muito mais em evidência no final, quando o personagem de Humphrey Bogart escolhe ficar sozinho após ter seu coração partido.
Em ambos os filmes, Nicholas Ray articula o drama ao redor da relação de seus personagens com o distanciamento do mundo – uma relação inconsciente, mas basilar para suas atitudes. O sonho de Bowie, protagonista de Amarga, é construir uma família e se distanciar de seu passado do crime. A solidão, a possibilidade de perder a pessoa amada, o faz sempre estar em fuga ao lado de sua namorada. Ambos se tornam foras da lei que percorrem a América em busca de paz, enquanto os crimes do passado acompanham o jovem como uma praga. A tragédia que se constrói aqui está diretamente ligada ao fato de Bowie ser incapaz de escapar de seus feitos e criar um novo isolamento para ele e sua família. O risco de persistir em uma vida normal, em perseguir a esperança e o amor, é expor também sua companheira aos perigos ligados à fuga da polícia e torná-la alguém à parte da sociedade e do mundo. Bowie tenta fugir da própria solidão sem perceber que nesse caminho constrói outra forma de afastamento, já que ele e Catherine se isolam de tudo para criar sua própria dimensão amorosa.
Em No Silêncio da Noite, Ray desenvolve a relação do protagonista com a solitude de forma diferente, fazendo com que a condição seja mais presente no impacto final da obra. Trabalhando no roteiro de seu novo filme, o protagonista Dix Steele — Humphrey Bogart, em uma das grandes atuações de sua carreira — escreve: “Eu nasci quando ela me beijou. Eu morri quando ela me deixou. Eu vivi por algumas semanas enquanto ela me amou”. Fica implícito como a condição solitária do personagem acompanha toda sua vida, e a exceção é justamente o período no qual está junto de Laurel (Gloria Grahame). Steele, que é investigado por um assassinato, constrói uma casca para se proteger do mundo. É uma figura que alimenta o próprio isolamento e sabota suas relações de forma que os demais personagens, assim como o espectador, sempre duvidam de seu caráter.
Até os momentos finais, nunca sabemos se Dix Steele é culpado ou não pelo crime, e sua personalidade e atitudes dúbias e agressivas reiteram e alimentam nossa inquietação e incerteza. É na conclusão, porém, que Ray nos mergulha na melancolia de Steele. Quando o protagonista opta por se afastar de sua amada por ela não ter acreditado em sua inocência, nem a câmera de Ray consegue se aproximar do personagem. Vemos Steele se exilar aos poucos, fugindo do amor e da câmera, de costas para as lentes, desaparecendo no horizonte enquanto caminha. Steele experimentou o amor e a decepção, e vê o distanciamento como única alternativa para seu coração partido.
Com ambos os filmes fazendo um estudo da relação de seus protagonistas com suas próprias existências solitárias no mundo, Amarga Esperança e No Silêncio da Noite são belos exemplos de dois casos distintos de pessoas atormentadas pelo próprio medo, projetando no amor a esperança de salvação para o isolamento. No fim, Bowie decide também trilhar seu caminho para o exílio após ver que não há mais como fugir da polícia. A condição do protagonista de Amarga Esperança é talvez mais trágica justamente pelo fato do personagem entender que é impossível escapar de seu passado e que o auto exílio é a única forma de proteger quem ama, mesmo que essa escolha seja feita tarde demais.
Mas é nas diferenças que acredito que Ray consiga fazer cada uma das obras ser especial de seu jeito. O caminho ermo escolhido por Bowie faz com que Catherine também se torne uma desajustada, e, assim como seu companheiro, fadada a nunca ser absorvida pelo mundo. É uma solidão psicológica, mas também espacial, física, que tem implicações na vida material, no convívio em sociedade. Já Dix Steele vive a solidão absoluta, pois não é excluído da sociedade – afinal, é inocentado –, mas é condenado para sempre a não ter o amor que o fez sentir vivo pela primeira vez. Steele escolhe o autoexílio não para proteger quem ama, mas para punir a si próprio, por ter amado e confiado; escolhe a distância do mundo, do amor e da câmera de Ray por ver com amargura tudo que o ronda e não mais encontrar valor ou felicidade no que está diante de seus olhos.
Há um elemento latente e muito importante no clímax de ambos os filmes: o acaso. Por questão de momentos, tanto Bowie quanto Dix poderiam ter sido mais bem afortunados. Uma ligação feita com algumas horas de antecedência faria com que Dix e Laurel vivessem o “felizes para sempre”, assim como alguns minutos de antecipação permitiriam a Bowie se despedir de Catherine e trilhar seu caminho sozinho. O puro acaso condiciona o exílio de Dix e a morte de Bowie, assim como também obriga Laurel e Catherine a trilhar sozinhas suas próprias solitudes. Os rapazes não só parecem fadados a serem solitários por toda sua vida, mas também acabam amaldiçoando as mulheres que amam ao mesmo destino.
Romances interrompidos, sonhos quebrados e sorrisos que não foram trocados: Amarga Esperança e No Silêncio da Noite são filmes de pessoas apaixonadas e cheias de desejos, mas que tudo que conseguiram foi o silêncio absoluto, a ausência da palavra de conforto ou do abraço reconfortante; resta apenas o eco da própria consciência, das cicatrizes e mágoas diante do único caminho que o destino guardou: o exílio.