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O Absurdo Mediado por Algoritmo

Todas as grandes ações e todos os grandes pensamentos tem um começo irrisório. As grandes obras nascem, frequentemente, na esquina de uma rua ou no barulho de um restaurante. Assim também a absurdidade. O mundo absurdo, mais que qualquer outro, extrai sua nobreza desse nascimento miserável.

Albert Camus em O Mito de Sísifo

Entre as redes sociais mais populares da atualidade, o TikTok é aquele que talvez melhor explique — ou entenda — as relações interpessoais no capitalismo tardio. Lançado na China, em 2016, o aplicativo precisou de apenas 2 anos para ser o mais baixado em todo mundo e ressignificar como os usuários pensam o registro audiovisual na internet. Se é o Vine que inicia as possibilidades de criação instantânea a partir do smartphone e o Snapchat — e posteriormente os Stories do Instagram — que massifica esse conceito, é só a partir do TikTok que a rede assume-se quase que como um simulacro da realidade. Não há mais espaço para a rotina, tudo é pensado, roteirizado e encenado.

Se a lógica de criação se dá na roteirização do banal, a exibição só reforça isso. Sem a necessidade de um login para acessar o conteúdo, o aplicativo disponibiliza algumas opções de interesses como Comédia, Animais, Esportes e Humor para definir qual conteúdo exibir para o usuário. Simples e rápido. Depois disso os clipes são exibidos ad infinitum na tela do celular, o que em poucos minutos gera uma certa estranheza. Algumas músicas, piadas ou rostos começam a se repetir até o ponto que um novo usuário sinta-se zapeando pela TV Aberta e tenha finalmente assimilado o absurdo existencialista que mantém a rede social de pé e cada vez mais popular.

Essa experiência se encontra em algum lugar entre Um Dia Na Vida (Coutinho, 2010) e Aquilo que Fazemos com as Nossas Desgraças (Tuoto, 2014). Mas enquanto os dois partem da apropriação de imagens — Coutinho com a TV e Tuoto com a Internet/Godard e Anne-Marie Miélville — para produzir um recorte autoral, no TikTok tudo é feito por um algoritmo em poucos segundos. O usuário tem a sensação da escolha, mas é um amontoado de linhas de código que decide, não apenas o que ele vai consumir, mas, também, o que vai passar a produzir. Não existe um fio condutor, uma proposta estética, uma causa nobre. Nada. O valor está na autorreferência forçada pelo dispositivo. É a vitória do meio sobre a mensagem. Qual a potência disso?

O tiktoker existe como mero proletário da ferramenta/algoritmo. Sua única opção para existir é replicar tudo aquilo que faz sucesso, porque dentro dessa lógica perversa é da virtualização que nascem os virais. E, a partir daí, tudo é possível: o quase-choro de uma garota ao som de Mariah Carey é diluído até existirem tutoriais da coreografia no Youtube; danças e histórias tipicamente bollywoodianas são assimiladas e disseminadas no ocidente; ou um Don Juan jovem-adulto-pós-moderno é ressignificado, discutido, replicado e odiado. O idioma ou a cultura local, nada disso importa. Em 20 segundos não dá para pensar sobre isso. Logo depois tem outro vídeo. E outro. E outro. A roda nunca para de girar.

O ABSURDO E LIBERDADE

Quando escreveu Mito de Sísifo e introduziu a sua teoria do absurdo, Albert Camus partiu da literatura existencialista para traçar paralelos com a vida moderna. Para ele, a absurdidade do mundo está no banal, naquilo que ninguém é capaz de perceber. Ao se comparar o destino de Sísifo com o de um operário que trabalha durante a vida toda fazendo as mesmas tarefas, a principal diferença é que consciente de sua situação, o personagem-título do ensaio entende toda a extensão de sua miserável condição e, portanto, é livre ao seu modo.

O que separa o homem-absurdo do homem-comum é o desejo pelo esgotamento completo dos sentidos. Só vive a absurdidade aquele que aposta na finidade da vida frente à certeza da morte. A derrota não o assusta nem a eternidade o seduz. Sua questão é sempre o próximo passo, o próximo desafio. Distraído na falta de significado da efemeridade ele encontra seu caminho ciente de que não há nada além disso para almejar. Ao aceitar as regras do jogo, o destino deixa de ser uma punição.

Camus escolhe três personagens para expressar essa idéia. O primeiro é Don Juan, o sedutor que vive o amor — não em sua concepção romântica — ao máximo ao percorrer todas as possibilidades de desfrutar da vida. Explorar essa multiplicidade é a sua única ambição. O próximo exemplo é o Ator, que, ao desprezar sua individualidade, é sentenciado a viver eternamente uma história que não é sua. Toda a sua existência está resumida na duração do espetáculo. Já o terceiro exemplo do absurdo é o Conquistador, homem-guerreiro que, indiferente às promessas de perenidade, vive para acumular, apoderar-se do que considera seu. Não deixa herança ou legado. Vive simplesmente para medir sua força certo de que a derrota um dia chegará.

É por ser um herói-absurdo ideal que jornada do tiktoker vai ao encontro com a de Sísifo. Se o personagem da mitologia grega é condenado a carregar uma pedra até o topo de uma montanha para vê-la despencar até o ponto de partida por meio de uma força irresistível durante toda a eternidade, o criador de conteúdo replica e participa de tudo que é hypado na rede social para dominá-la por completo, até que um dia seja ele o replicado. De mero operário de um sistema viciado, agora é carregado pela rede ao topo da influência para validar toda uma existência maldita. Trajeto completo, o destino permanece o mesmo e volta para o começo. A diferença está no homem, finalmente a par de sua história e completamente livre da cólera rente ao absurdo do mundo. Purificado, ele vê a rocha chegar ao pé da montanha e volta a empurrá-la com uma única certeza: é ele também um pouco rocha a partir de agora.