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Desconhecido no Meio da Multidão: O Brasil de Sganzerla e Welles

A feitura de um projeto de cinema anuncia virtudes, e também, as mesquinharias de um país. Ressignifica símbolos, do indivíduo para o coletivo, e eleva regionalidades, do local ao global. O Brasil atravessa os anos 60 em inconstâncias e novidades: ascende e se dissipa o Cinema Novo; a organização e multiplicação do Tropicalismo; o videotape desce as Américas para industrializar a espontaneidade da televisão. O ciclo da jovem nação brasileira desde então inspira esgotamento e estafa.

A contribuição milionária de todos os erros.

A geração de 60 tinha na ebulição cultural a possibilidade de somas: soma de interesses, de linguagens, de técnicas e de experimentos. A saída do subdesenvolvimento pela vanguarda. Jovens que observavam à distância uma mudança, seu próprio Manifesto Antropofágico, no horizonte. Viam no cinema mais que uma verdade universal, mas uma profecia. O golpe de 64 acontece. Em 1968, Rogério Sganzerla – catarinense abusado de 22 anos, natural de Joaçaba – roda seu primeiro longa, O Bandido da Luz Vermelha,  em São Paulo, às vésperas do Ato Institucional nº 5.

O cinema de Sganzerla, assim como o de Orson Welles (um de seus heróis cinematográficos), é produto de um longo processo de depuração, que atravessa décadas de sua filmografia, anos de obsessões e de espera. Uma grife de cinema interrompido, onde é tudo verdade, mas quase nada é possível. Em 68, as possibilidades de um novo cinema novo eram o ponto de partida de um fiapo de esperança, com o sucesso de Bandido e A Mulher de Todos, em 1970. O far west do terceiro mundo e a chanchada cafajeste têm sucesso de bilheteria mesmo com suas experimentações em gênero e humor arregaçado. A virada da década guarda esse bolso de esperança mesmo com o iminente estancamento do recém nascido cinema udigrudi (assim nomeado por alguns azedos bastiões do Cinema Novo). Com sua continuidade interrompida por agentes políticos e aspectos esotéricos, não é possível chamar de natimorto o movimento iniciado em 68. Abriu a Boca de Lixo como microcosmo do Brasil, transmitiu para o mundo o grito alienígena interceptado por Sganzerla, Júlio Bressane e companhia: o terceiro mundo vai explodir. Mais uma vez, a profecia pela euforia.

Dos regimes ditatoriais da América Latina ao sonho Norte-Americano, os paralelos tecem uma realidade de verdades que co-existem, mas não se sobrepõe. A revolução e a subversão. Lá, a indústria, aqui, o marginal. Vivo ou morto, o espírito de independência de 68 pulsa até quando estancado.

O Carnaval.
O Sertão e a Favela.
Pau-Brasil. Bárbaro e nosso.

O Brasil como entidade sempre foi a força perseguida no cinema de Sganzerla, uma presença elusiva e amaldiçoada. Em sua tetralogia de filmes sobre a passagem de Welles pelo Rio de Janeiro, exorcizou sua obsessão. A remontagem de uma identidade nacional, prometida e extraviada em algum ponto do caminho, são o mote dos três primeiros: Nem Tudo é Verdade (1986), A Linguagem de Orson Welles (1990) e Tudo é Brasil (1997). Rogério tinha em Welles (assim como em José Mojica Marins), figura mítica em que enxergava o potencial de invenção da linguagem cinematográfica: a magia e síntese de Welles; o ardor e excesso de Mojica. Assim como a injustiça de um sistema (ou país) sem memória e burocrático, o ostracismo e alienação sofrida pelos dois bruxos é um tema revisitado com constância por Rogério. 

Em um reflexo aos movimentos artísticos de 1928, Bandido ilustra o Manifesto de Sganzerla, por um cinema sem limites e sem pudor, que se permite imitar ou não imitar, ser coloquial e sujo, que rejeitava uma crescente academização, um ensaio de sistematização que Welles já havia sinalizado como prejudicial. A carência de figuras nacionais que tenham se expressado sem interrupções, que tenham conseguido fazer de suas propostas (Oswald de Andrade, Sganzerla) parte viva da memória brasileira, evidencia que o Brasil julga, mas não compreende. Ou escolhe não absorver. Desde que o samba é samba se busca uma conciliação entre a melancolia do terceiro mundo e o idealismo do ufanismo brasileiro, um manifesto que seja concretizável. Onde o antropofágico é não só um meio, mas o fim, a pedra fundamental para o futuro viável. Mesmo em setores nacionais bem sucedidos como a música, que enverga por uma identidade nacional de dualidades, é difícil, mesmo em canção, vislumbrar um país orgulhoso. Diferentemente da música, o Brasil sentiu sua produção cinematográfica desaparecer, ou se esvaziar de propósito. Tomando por exemplo, Mojica, que inventou e abriu a mata para o cinema nacional: fazer rir nunca foi sua intenção, e mesmo assim suas realizações condenaram o seu futuro.

Como Belerofonte, o mestiço grego que derrubou quimera e ainda assim foi subestimado por seus iguais, o desafio do cinema brasileiro é encontrar crentes nas possibilidades dos mitos. Belerofonte esgota sua existência em provação, é vítima de sua própria habilidade. É lhe prometido visitar o Olimpo, terra de seus ancestrais, no que deveria ser sua apoteose. A euforia guia sua jornada, a possibilidade de algo maior. Euforia que se transforma em ressentimento. O ingênuo Belerofonte é testado por reis, forjado em tarefas que não deviam ser suas, para vez após vez se provar digno. O faz sozinho, esperando logo ser merecedor de estar com os seus. Promessa de grandeza que anuvia o julgamento, atravanca a evolução. A mitologia do cinema brasileira, infelizmente, não conta com providência divina para a realização de suas empreitadas. Não há nada que resolva os percalços se não a invenção.

O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça.

O Brasil é carente por um amigo e o vento traz novidades. Enviado pelo governo dos Estados Unidos e pela RKO em missão de boa vizinhança – visando a realização do documentário É Tudo Verdade sobre o carnaval do Rio – um Orson Welles com 27 anos aterrissa com sua equipe. Além dos esforços de propaganda, o governo norte americano tentava se agraciar ao alegre e prestativo povo brasileiro, em apoio aos esforços dos aliados na segunda guerra. Welles quase imediatamente se ocupa em filmar o exato oposto do que ambos governos esperavam. Um Brasil alegre, preto e flagelado por desigualdades. O cachaceiro Welles teve alento nas amizades com Grande Otelo e Herivelto Martins, futuros bastiões da cultura popular que se portaram como guias não oficiais do gigante gentil, numa jornada pelo Rio de Janeiro desconhecido. Descendo e subindo morros, entrevistando jangadeiros revoltosos e ofertando pinga para os santos, Orson não respondia os ofícios de seu estúdio e não se submetia às orientações do governo, abraçou a subversão brasileira. Não é preciso lembrar que seu objetivo original, mostrar um Brasil do futuro e aberto ao futuro novo mundo pós-guerra, estava sendo soterrado pela descoberta de uma besta adormecida no âmago dos morros, uma inquietação que lhe era familiar. Welles, porém, não teve alento em descobrir na submissão dos representantes brasileiros uma política de folclore pela cooptação de símbolos, método eugenista e violento para construção forjada de um um imaginário social. O maior erro de ambos os governos foi ver em Welles um cineasta que pudesse vender o produto Brasil, as bananas de Carmem Miranda e o distante Pão de Açúcar. Ao pisar em solo brasileiro, Orson sintonizou vibração mística, quis olhar a alma do país através de seu corpo. Soberba (ou The Magnificent Ambersons), seu segundo projeto como diretor, filmado em 1941, estava nas mãos do montador Robert Wise (eventual diretor A Noviça Rebelde e Amor, Sublime Amor). Em meio a sua experiência brasileira, Welles recebia e enviava notas e cortes do filme. Soberba, assim como É Tudo Verdade, também teve um trajeto interrompido, versões desaparecidas e uma redoma de urucubaca em seu entorno. Depois de anos tentando se livrar de um sistema rígido, ele estava sendo vitimizado pelo estúdio que lhe prometeu autoridade e pelas expectativas políticas de duas nações. Enquanto os Estados Unidos buscavam um aliado político via soft-power, o Brasil, terra de oportunidades, buscava construir imagem higienizada e calcada em falsidades. Para gringo ver, há de se coibir a macumba e não citar Oswald de Andrade. A RKO havia enviado seu melhor cineasta, mas também, o seu maior artesão de verdades e mentiras.

País de dores anônimas.
De doutores anônimos.

Assim como Welles, o Brasil está amaldiçoado, na mira de um ebó. A pemba endereçada ao cinema nacional fez de nossa sina não ser o poder produzir, e sim, o terminar. Em O Signo do Caos (2003), Sganzerla imagina o destino dos negativos perdidos de É Tudo Verdade, contornando os ruídos conspiratórios que cercam o projeto. De executivos da RKO grelhando negativos ao envolvimento do governo brasileiro na queima de arquivo, o filme perdido foi envolto em mistério durante décadas, traumatizaram Welles por ser o catalizador dos piores anos de sua vida. 

O Departamento de Imprensa e Propaganda do governo Getúlio Vargas não se comunicou diretamente com Welles durante a filmagens, mas quando notícias de seus registros em favelas mostrando o samba e ritos afro-brasileiros começam a ser inflamados por veículos de imprensa, logo se movimentaram peças que causaram intervenção da RKO na produção. Com uma mudança na presidência do estúdio, os fundos para É Tudo Verdade são suspensos e Welles é obrigado a voltar aos Estados Unidos, com um filme inacabado e outro mutilado por seus produtores. Mesmo sem realizar seu filme sobre o Brasil, o veneno já havia sido lançado. Não só suas realizações estão sendo subjugadas como também sua reputação, já não das melhores, recebe mais uma insígnia de insubordinação.Orson não escondeu que nunca se recuperou desse período. Entre ter perdido o controle de Soberba e a sabotagem de Verdade, havia o opressor senso de submissão compulsória, múltiplas forças conspirando para o mesmo fim, com métodos distintos. A morte súbita do jangadeiro Jacaré, um dos eventuais personagens de É Tudo Verdade e companheiro de Welles em sua estadia, a última pá deste capítulo sombrio que reverbera até hoje, também o atingiu. Foi Orson Welles quem ensinou Sganzerla a não separar a política do crime.

A nunca exportação de poesia.

A verdade é inviável num país esquizofrênico e subdesenvolvido. O imaginário brasileiro não foi gentil com tudo aquilo que era considerado marginal, celebrou a alegria nacional, mas nunca nosso cafajestismo e vulgaridade. Só nos interessa o que não é nosso, o que não podemos ter, a castidade forjada de outros povos inclusive. Carmen Miranda, nosso primeiro símbolo de esperanças globais, abraçou o samba. O envelopou numa faceta manufaturada de alegria brasileira e foi recebida com frieza em seu retorno, disseram que voltou americanizada. Sganzerla, Bressane, Reichenbach, Tonacci, Khouri e os expoentes da ideia materializada na Boca do Lixo em 68 se agarraram ao lodo, os aspectos mais sujos e fora da lei do Brasil e suas figuras. Por consequência, aproximam seus cinemas, o quão absurdo pudessem parecer, de uma linguagem extremamente original e pictoricamente brasileira. Talvez Carmen Miranda realmente tivesse ficado preocupada com suas mãos, talvez na hora das comidas fosse mesmo do camarão ensopadinho com chuchu. Isso não a torna impassível de absorção por um sistema que queria sua brasilidade como produto, seu orgulho patriota como commodity. O chamado Cinema Marginal (denominação detestada por Sganzerla) negou a plastificação da identidade brasileira, tentou criar poesia através da impossibilidade de se criar arte. A obsessão de Rogério com Orson não está não só na sua capacidade de síntese, mas em tudo que não foi dito por ele. Por maiores que tenham sido as tentativas de dizer.

Foi preciso desmanchar.

Nessa incapacidade de se criar, na curiosidade da hipótese que buscamos na arte, está a completude do que se não pôde fazer em vida. Em seus 4 filmes sobre Welles, Rogério esmiúça um dos aforismos de Bandido, sua missão por carreira: quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha

Como Grande Otelo nos dias ensolarados de 1942, o filho de Joaçaba depositava em Charles Foster Kane a esperança de um futuro que seu país não lhe permitia, mas possível pela magia do cinema. Cinema marginal que ao máximo de seus poderes foi obrigado a ser fora da lei. Rogério buscava a sua emancipação e a do cinema no Brasil, um cinema sem fronteiras, de corpo ou alma. Um mago incompreendido e um jangadeiro injustiçado, figuras mitológicas por simples descrição, reclamam do café frio à beira do morro. Imagem singela da união resistindo a aura de opressão que não cessa em pairar no ar. A união, equidade e solidariedade proposta por Andrade no seu Manifesto Pau-Brasil, e mais tarde, no decisivo 1928. Aí, a tal identidade brasileira.

Herivelto Martins, que esteve tão próximo de Orson Welles observou em canção: Lá não existe felicidade de arranha-céu / Pois quem mora lá no morro já vive pertinho do céu. Welles e Sganzerla tentaram abrir o Brasil, mas o Brasil não permitiu. Observaram o externo para então examinar o interno, tentaram sintetizar a alegria e miséria. A síntese do Brasil está no cinema, como está na biologia, como está no morro. Conclusão: sozinhos a gente não vale nada. E daí?

A síntese
O equilíbrio
A invenção
A surpresa
Poesia Pau-Brasil

Trechos de Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade.