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Olhar Vigilante: o Vídeo Como Réplica da Verdade

Como o mimeógrafo e suas cópias frágeis e defeituosas, o vídeo surgiu como um reprodutor de linguagem audiovisual de textura e características análogas ao cinema, mas nunca em pé de verossimilhança. Em evolução desde seu emprego prático na televisão e na massificação das câmeras de mão na virada do milênio, o vídeo se tornou ferramenta que esclarece a existência da visão como tecnologia, do olhar como dispositivo. Da auto-documentação aos circuitos de segurança, a mobilidade da imagem evidencia o poder de fogo da câmera, extrapola o campo estético e físico e se torna arma social. Quem mira a câmera, mira por quê? Com que intenção? O cinema, como qualquer arte, não é percebido somente por suas intenções. Fato que não o isenta das implicações práticas da intenção do olhar. O estado de constante documentação e vigilância do cotidiano nos conecta a uma ideia de proximidade virtual que jamais poderia ser completamente realizada: onde o reconhecimento visual é subjetivo e os símbolos da imagem são dependentes do suporte tecnológico que a recebe. Porém, a inexistência de uma métrica unitária na leitura das imagens tem algumas exceções, sendo o granulado e “má” qualidade do vídeo uma delas. As sombras digitais e interferências físicas do VHS e filmadoras de mão tornam o vídeo uma réplica assombrada do “real”, o vale da estranheza da imagem em movimento. Nenhuma era da produção audiovisual, nem mesmo os primórdios da película em preto e branco, possui plástica tão reconhecível quanto a que o sistema de vídeo móvel e caseiro expeliu para o mundo. Antes do fim do milênio alguns filmes a empregavam para manipular o subjetivo, como em Festa de Família de Thomas Vinterberg ou A Bruxa de Blair de Daniel Myrick e Eduardo Sanchez. Ambos os casos tiraram proveito da maleabilidade das filmadoras de mão para trazer um senso físico aos seus quadros, um aspecto que exige uma pseudo-resistência ao tremilique da câmera. Isso seria a base do que nos próximos anos se desdobraria a movimentos e subgêneros específicos, do mumblecore ao found-footage, que pouco têm em comum além de sua estética de baixa fidelidade. De fato, é possível apontar um outro elemento que o cinema que abraçou esse tipo de imagem possui em seu DNA: um certo sadismo domesticado, impulsionado pelas cenas reprisadas a exaustão dos acontecimentos do 11 de setembro. Essas correntes tiveram consequências na produção cinematográfica de baixo orçamento, especialmente nos Estados Unidos, e também ecos na então jovem internet, que facilitou a profusão o uso de vídeos amadores em suas coberturas jornalísticas e de entretenimento.

Em 2005, a ideia de celebridade estava escancarada, os escrutínios da vida pública dispostos em imagem. Um guarda-chuva atingindo a janela de carro uma imagem se fixou ao imaginário cultural de uma geração. Tão constante sua associação a popularização da cultura de paparazzo que pautaria a cobertura midiática por bons anos, Britney Spears talvez seja o maior símbolo de uma duplicidade de imagem trazida pelo advento do vídeo. Enquanto em seus primeiros e maiores vídeos ela representa uma idealização do sonho americano, no material difundido por TMZ e portais do sorte temos um vislumbre da réplica sombria da celebridade-Britney, um espectro desumanizado da figura angelical. A doppelganger que disparou com seu guarda-chuva contra o paparazzi, por boa parte da próxima década definiu o discurso imagético que cercou sua percepção perante o público. Mesmo que sua figura loura-plástica tenha sido cooptada inúmeras vezes como símbolo pelo cinema (Krysta Now em Southland Tales – O Fim do Mundo, para ficar em apenas um exemplo), o destino de Britney divergiu de figuras como Marilyn Monroe ou James Dean. Morena ou careca, sua réplica era muito mais interessante ao público, que pela primeira vez observava a derrocada em baixa resolução e em tempo real. Ainda no ecossistema da música pop, Beyoncé representa um contraponto no uso da imagem, especialmente da estética mínima e distorcida do vídeo, para aproximar o imaginário coletivo de si e controlar uma narrativa. Desde suas primeiras incursões como diretora de seus próprios vídeos e documentários, fez uso do arquivo pessoal filmado por webcam e celular, tomou o casual para si, se recolheu para criar seu próprio material e negou que o público tomasse sua imagem da forma que quisesse. 

Ainda na metade da década, a estética que viria a parir os reality shows modernos no auge do reino midiático do TMZ teve preâmbulos na comédia, com programas como Jackass e, mais especificamente, The Comeback, série de Lisa Kudrow e Michael Patrick King que atualizou o mockumentary para a televisão e inaugurou a sitcom-documental que seria difundida por The Office e Parks and Recreation nos anos seguintes. Se desenrolando como uma tentativa de reality show por uma celebridade de segundo escalão, The Comeback encontrou o pulso que o visual lo-fi carregava e sua relação com a fama, uma de humilhação pública como fonte de entretenimento. Mesmo que o aspecto caseiro difundido por essa fosse diluído de temática nas sitcoms que a seguiram (fugindo do híbrido sitcom/doc, Kudrow demonstrou vanguarda com os dispositivos da imagem, criando em 2009 uma série filmada via desktop: Web Therapy), The Comeback ilustrou a obsessão do uso do pseudo-realismo como plataforma. Mas somente da metade para o fim da década de 2000 é que o cinema estadunidense produziu as duas obras que casaram essas estéticas, o lo-fi e o sadismo, a filmagem amadora e a humilhação, a um discurso imagético definitivo. Trash Humpers, de Harmony Korine, fecha a década com uma variação anarquista e amaldiçoada do que nós consumimos no Brasil via Videocassetadas, e que os Estados Unidos multiplicou em programas de humor e pegadinhas, com um olhar oposto ao afeto que Korine empregou em Julien Donkey-Boy, de 1999.

Em Império dos Sonhos (2006), David Lynch remonta os passos de Cidade dos Sonhos (2001) acompanhando o reflexo do percurso por câmera de segurança, um reflexo instável. Celebrado desde a virada do milênio, Cidade dos Sonhos compartilha muitos dos temas de Estrada Perdida e Twin Peaks: O Retorno, mas é em Império que o filme tem seu principal contraponto. Não à toa, dois dos maiores filmes de Lynch, por conta própria obcecado com duplicidade, funcionam como sombras de si mesmos, operando em rimas sobre Los Angeles, arrependimento e fama. A Diane de Naomi Watts tem trajetória de observação em quase toda a duração de Cidade, se entregando uma projeção de fantasia que a vê idealizando um aspecto de si mesma, representado pela ingênua Betty. A aspirante e sonhadora reconstitui a jornada da amargurada Diane, que serve como testemunha/narradora de seus próprios feitos, criando em ela mesma um estado de sonho que a isenta da culpa que carrega e das escolhas de que se envergonha. Antes mesmo da ascensão da estética da humilhação, Lynch desenha alguns sinais do que estaria por vir, mesmo que sua personagem negue sua própria história. Em Império dos Sonhos, porém, a Nikki Grace de Laura Dern é colocada em confronto direto consigo mesma desde a primeira sequência. 

Após os bons ventos de Cidade, Lynch empenhou boa parte da década em projetos secundários ao cinema, especialmente séries caseiras para a internet, que o aproximaram da estética digital. Império dos Sonhos foi realizado totalmente com uma filmadora digital portátil, que mesmo facilitando a logística de filmagem em termos de produção, não exatamente representou um distanciamento estético do restante da obra de Lynch. Da cacofonia visual de Eraserhead às intervenções distorcidas em Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer, sobreposições de texturas é um elemento constante em seu trabalho, e primário em Império dos Sonhos. Se o início lustroso e novelesco de Cidade dos Sonhos exprime o aspecto fantasioso do delírio de Diane e prepara o terreno para o caminho místico que o filme toma, Império segue a contramão e joga a audiência no pesadelo sem pestanejar. 

Nikki recebe uma visita e aceita sua presença, enquanto a Betty de Naomi Watts aterrisa em Los Angeles e se permite ser absorvida pela cidade, a câmera de Lynch mediando uma ideia de normalidade apenas para Betty. Com Nikki, o filme logo assume o recurso do vídeo-dispositivo, com a camcorder imprimindo uma qualidade vigilante, voyeurística e amaldiçoada. Enxergamos timidamente Nikki receber a figura interpretada por Grace Zabriskie, de longe, até sermos convidados a chegar mais perto, no momento em que Zabriskie é recebida e desenrolar sua profecia sobre o suposto futuro de Nikki. Acionando o vídeo através de sua relação com o espaço e seus atores, Lynch potencializa o aspecto fantasmagórico da cena – assim como de todo o filme – enquanto sinaliza o deslocamento temporal que permeia a duração de Império. Ele não perde tempo em jogar a audiência no meio de um possível sonho ou delírio de Nikki. Diferentemente da protagonista de Cidade dos Sonhos, que ativamente manufatura uma redoma que a afasta da realidade, Laura Dern interpreta Nikki com a alienação passiva de quem não sabe se situar no tempo ou espaço, mesmo enquanto tenta agir mas se vê paralisada. Com sua plástica digital e irregular, Império dos Sonhos supera o hipotético obstáculo do que em teoria poderia ser um filme surreal demais para ser funcional, posicionando o espectador como cúmplice e vigilante da câmera, convidando subjetivo a assumir o comando da percepção. Como Nikki, somos submetidos a uma lógica de quase-realidade, um estado de vigilância constante contra nós mesmos. O uso do vídeo em Império era inevitável, a única ferramenta que traduziria o instinto pictórico, mas sempre humano, de Lynch a um cinema fantasioso, mas racional. O conduíte que leva a imagem artificial ao seu estado orgânico e bruto, a livrando de processos de manipulação posterior. A imagem é o processo.

Fosse produzido no novo milênio e transmitido via webcam, Jeanne Dielman se tornaria uma relíquia artificial de engajamento, a experiência do filme sofreria a interferência de uma subjetividade forjada. A nossa interação com o audiovisual nas últimas duas décadas evoluiu de uma postura vigilante para uma de autoridade. Ao abrir o portal para um simulacro do real, o vídeo caseiro ou móvel do final dos anos 90/início dos anos 2000 nos condicionou a observar esse tipo de imagem de forma mais afastada que anteriormente, com mais distância textual do que era possível com o cinema, porém, com um grau ainda mais aguçado de reconhecimento. A impessoalidade nesse tipo de registro, dos circuitos de segurança às Videocassetadas, remove a imagem de contexto, as posiciona em um vácuo temporal que dá vasão a um caos vago e imensurável, caos que pode se dissipar quando essa câmera cínica não funciona como extensão do corpo filmado, e sim, do corpo que filma. Em A Bruxa de Blair, o registro se encerra quando os personagens morrem: o corpo abandona a câmera, o mistério está na forma. O filme não existe pelo mistério emocional e sim pelo físico. Já em Império dos Sonhos, Lynch faz da câmera conteúdo, que mesmo quando vagando por campos dúbios do sonho de Nikki, o fazem em conjunto com sua jornada para o despertar. Na tentativa de ingerir o cinema, a digestão do vídeo não é dependente completamente do jogo plástico que o meio permite, mas da ciência do olhar como discurso e missão. É isso que Lynch reconhece.

Se somente o indivíduo pode ter a certeza de sua intenção ao apontar a câmera, seja uma filmadora portátil ou seja smartphone, qual o impacto dessa produção na retroalimentação de uma cultura que abraçou a mobilidade, bônus e ônus inclusos? A performance de autenticidade foi facilitada pela profusão da tecnologia, a aproximação remota foi simplificada e a constante documentação foi agilizada. Nisso, o vídeo se torna um vírus. O registro, muitas vezes descartável, só sobrevive quando testemunhado e apropriado por um discurso, processado por um olhar, também individual. Nos registros de paparazzo aos desafios de dança do TikTok, o tempo de consumo do material varia, mas nem tanto: são pequenos trechos de mídia que preenchem uma necessidade imediata. Dadas as diferenças entre esses dois tipos de conteúdo, é curioso observar que, além da instantaneidade, suas origens remontam ao fenômeno do vídeo móvel e a remodelação de uma audiência aberta a consumir imagens defeituosas, caseiras e até mesmo indecifráveis. Logo após a formalidade do cinema ser contestada pela televisão, que difundiu uma ideia de maior distribuição da informação (mesmo que enquanto também empregando uma linguagem austera), o conteúdo do novo milênio não se prende ao tripé ou a boas práticas de produção. Tudo em busca de uma reprodução de realidade que talvez seja muito mais artificial que a produzida em estúdio, mas mesmo assim, mais acessível. A busca não é por objetividade mas por aproximação, o espectador espera ser guiado e entrega sua subjetividade aos olhos de quem guia a câmera, mesmo que essa figura seja automatizada, algo que Evangelos Tziallas resume em seu ensaio “Surveillance Footage as Cinematic Double” como o “retorno dos reprimidos”: cenas de vigilância e suas variáveis como o duplo do cinema. É nessa tentativa de mediar pela tecnologia algo completamente subjetivo que se criam réplicas bizarras que confundem a percepção de uma imagem.

No que pode se dizer desse aspecto do vídeo como um motor para o vigilante desumanizador, ou do vídeo como um vírus, é fundamental posicionar esse consumo como parte de uma instituição cultural, cada qual com suas características. Vídeos que circulam o Brasil via WhatsApp podem compartilhar aspectos visuais com aqueles consumidos por estadunidenses seguidores do TMZ, mas a etnografia virtual desses comportamentos possivelmente apontaria motivações diferentes. O denominador comum em todas essas instâncias é o conhecimento de que a vigilância, a partir de agora, é difundida não só pelo padrão estatal mas como norma tecnológica, e que, em alguns casos, a tecnologia pode se fazer passar como linguagem pura. Essas tecnologias contam com idiossincrasias propensas a uma leitura paliativa, com texturas e timbres que permitem a produção artística, e com identidade visual que promovem o estranhamento. Ainda sim, seus malefícios e benefícios serão dependentes da percepção de quem as consome, por mais amortecidos que estejamos. O mistério da emoção é insubstituível na replicação do real. É preciso olhar.