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Toada do Estrangeiro

A viola, usada pelos jesuítas na catequese coagida aos povos originários (sobreposta a cânticos e rituais até então imaculados), foi transformada em um instrumento de intrusão. Serviu como base para a proliferação de gêneros e subgêneros durante o fluxo da história, uma ferramenta tão individual quanto comunitária. No Brasil, seu caráter intervencionista via as violências da colonização veio ainda a ser caneta para a vida dos sertões, do campo e da vida solitária. Seu apogeu intimista traduziu em canção um dos pulsos sentimentais do país, após o primeiro e traumatizante contato com os europeus.

Somente na década de 1960 um disco instrumental de viola é lançado no mercado brasileiro, mesmo que os interiores estivessem tomados do que, à época, era denominada como música sertaneja. Forró, samba e a própria música caipira eram cobertos pelo mesmo guarda-chuva, para denotar gêneros “menores”. A Viola Do Zé (1966), de Zé do Rancho, traz repertório misto, de composições originais e regravações de sucessos dos anos anteriores. É um primeiro registro de uma vertente caipira tratada com erudição, de arranjos grandiosos e complexos. Esse estilo também já estava, a essa altura, presente nas gravações de duplas e artistas sertanejos com inclinação romântica, mas nem tanto naqueles dedicados às modas de viola. Por natureza uma mistura de expressões, das toadas de vaquejadas aos fados, as modas se alinham às tradições de cultura mista e de múltiplas influências, sintetizando em narração poética e melodia esparsa as aventuras banais do interior.

Nos Estados Unidos, o equivalente mitológico das modas de viola brasileiras já configurava indústria e era cultura massificada. Artistas como Hank Williams, Marty Robbins e George Jones carregavam o imaginário do cowboy na música country — uma herança artificial, suplantada pela importância do faroeste na cultura.  Sendo subgênero do blues americano, que assim como a moda brasileira era formado por fontes distintas de composição e execução, o country em seu início também tinha um caráter mais banal, cantando as dores de amor e as promessas da terra dos livres e lar dos bravos.

Gene Autry se tornou o rosto do cowboy hollywoodiano para um mercado cada vez mais interessado nos mitos e canções do oeste, mesmo que a música country tenha origem em outra região do país. Dos matadores espanhóis aos gaúchos da América do Sul, os artistas country construíram um imaginário que extrapola o que era entendido como uma identidade norte-americana, trazendo traços espalhafatosos ao que era descrito como “música da terra”. Na década de 1960, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, o gênero já chegava à sua fase revisionista, com instrumentações minimalistas e lirismo que abraçavam as métricas da música folk. Por mais que a moda de viola brasileira e o country americano tenham se popularizado ao serem cooptados por (ou cooptarem) uma estética maior que suas delimitações, ambos tencionam a dicotomia do que é interno e o que é externo em sua gênese. Dos conflitos e encantos da terra, do mundo natural ao indecifrável interior. Funcionando como um memorial a figuras que habitaram onde hoje habitamos, esses gêneros trazem baladas ao imaginário, a um passado que pode nem ter existido e que, agora, sobrevive embalsamado em nossa memória. Não é de se surpreender que o revisionismo histórico tenha alcançado cada um desses cancioneiros, assim como alcançou o cinema décadas antes.

“Eu tenho poesia em mim. Tenho mas não vou escrever. 

Tenho senso o suficiente pra nem tentar.”

O folk de Leonard Cohen traz em sua composição traços dessa construção musical que é informada pelo passado enquanto o contrasta à frieza da vida moderna. Mesmo que ele não traga as figuras do caipira, do cowboy ou do gaúcho, suas letras desenham um cenário onde esses personagens ressoariam. A fricção entre grandiosidade e frieza é mais que presente em Quando os Homens São Homens, de Robert Altman. O faroeste revisionista simboliza um ponto divergente na carreira do diretor, sendo o exercício de gênero mais agudo em uma carreira composta por experimentações. Três canções de Leonard Cohen abrem e conduzem o filme de 1971, dão roupagem histórica às letras íntimas do canadense.

A tese de Altman, nessa adaptação de um romance de Edmund Naughton, é a relação da promessa norte-americana com a realidade pessimista, a vida sem esperança tanto para os espertos quanto para os sonhadores. A ordem de eventos é rotineira: o estranho chega à cidade, se estabelece e toma conta do espaço até ser desafiado por forças externas. O John McCabe de Warren Beatty é um apostador canastrão e não um pistoleiro experiente, um nômade que busca por uma casa. O companheirismo que ele busca se depara com a frieza do oeste. Ele está no lugar certo, a comunidade é próspera para seu tipo de negócios, mas em breve ele se dará conta que está ali na hora errada. O seu desejo por comunidade é seu erro, e também sua virtude. O covarde McCabe descobre que, mesmo em comunidade, não é apenas de camaradagem que um homem sobrevive. É uma história em que a solidão crônica de seus personagens não tem a métrica para a aventura prometida pelo sonho norte-americano, mas sim a de uma toada sobre mais um sujeito com um péssimo destino.

A chegada de Constance Miller (Julie Christie) à cidadezinha de Presbyterian Church é uma proposta de negócios para ela, e uma possibilidade para ele. Ao estabelecer uma casa de prostituição que opera junto ao cassino de McCabe, Miller trata a frieza com pragmatismo, resiste aos conflitos de território com a mesma dureza com que resiste também ao afeto do sócio. Ela se torna a voz da razão aos devaneios de um malandro ingênuo, que confunde seus sentimentos com suas ambições. No faroeste de Altman, há a natureza e o companheirismo, e esse último não sobrevive de nenhum atributo físico que não a confidência. A sua América não cobra na bala quem explora com violência a sua terra, mas os cenários enlameados e frios são a expressão de uma jornada interna onde o esoterismo do afeto pode preencher ou esvaziar os indivíduos em tela. 

As figuras que Altman filma têm pouco em comum com os cowboys alegóricos e mulheres opacas que habitam o cancioneiro country mais difundido. Em todos os seus filmes, ele constrói microcosmos distintos que se ejetam da normalidade norte-americana e ilustram uma sociedade em desarmonia consigo mesma. Em tons mais cômicos ou surreais, as investidas históricas de Altman posicionam seus heróis como bons picaretas que, apesar das circunstâncias, insistem em seu próprio código de ética em meio a situações as quais, inevitavelmente, os engolem sem esforço. O seu Buffalo Bill, de Oeste Selvagem (1976), traz um Paul Newman em modo pastiche, delineando uma figura que já não sabe mais onde começa o indivíduo e onde começa a construção mitológica. Com essa abordagem, Robert Altman carrega Leonard Cohen ao velho oeste para uma interpretação trágica do individualismo americano. Para esse individualismo, porém, não cabe as canções grandiosas sobre os pistoleiros destemidos e seus feitos, e sim, a trivialidade do vaqueiro e seu triste destino, eternizado em alguma toada, caipira e obscura.

Em busca de intimidade em meio ao sonho, John McCabe encontra a dureza da burocracia que media os mitos e as promessas. Seu destino é selado por enviados da maior empresa da região, que cumprem seu trabalho sem maior embate. Em vida ou em morte, a poesia de McCabe se expressa mesmo que ele insista em não verbalizá-la, com a tensão entre o que ele é e os mitos que o cercam ecoando para si, e para o filme. As vidas pequenas de McCabe e Miller ressoam por motivos diferentes, mas encontram harmonia em uma balada sobre a solitária busca por uma vida em conjunto. Apenas outros dois supostos José e Maria à procura da manjedoura.